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Bombardeio de mensagens eleitorais pagas no Whatsapp: o que o TSE pode fazer?

Não há a possibilidade de que o TSE aja sem ser por provocação. Trata-se aqui de respeitar uma fórmula basilar do Estado Democrático de Direito: quem tem o poder de condenar não deve ter o poder de iniciar o procedimento que leva à condenação

A woman holds a sign with the image of presidential candidate Jair Bolsonaro that reads
A woman holds a sign with the image of presidential candidate Jair Bolsonaro that reads NACHO DOCE (REUTERS)
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Em uma eleição que desafia todas as consagradas fórmulas de marketing político, as campanhas eleitorais parecem ter migrado do espaço público para as bolhas micro-segmentadas e monotemáticas dos grupos de whatsapp. Um tanto resignados, os eleitores se ambientaram ao compartilhamento frenético de mensagens feitas sob medida pra satisfazer ou escandalizar públicos-alvo bem definidos.

Porém, no dia 18/9 a Folha de São Paulo noticiou a compra por empresas como a Havan, ao custo de até 12 milhões de reais, de pacotes de disparos em massa de mensagens contra o PT no WhatsApp. A matéria afirma que uma grande operação, envolvendo centenas de milhões de mensagens, estaria sendo preparada para a semana anterior ao segundo turno.

Desde então, o torpor se rompeu. A poucos dias da eleição, surgiu um sentimento de urgência, com demanda por uma solução imediata. E o TSE, claro, foi o principal alvo da cobrança contra aquilo que, de um dia para o outro, se tornou intolerável.

Mas, afinal, o que pode o TSE nesse assunto?

Deixo claro, antes de tudo, que as explicações seguintes consideram a hipótese de os fatos descritos pela Folha de São Paulo serem verídicos, o que, evidentemente, não se confunde com imputar a conduta ao candidato. Em outras palavras, o que se debate aqui é a configuração jurídica dos fatos noticiados e, não, sua efetiva ocorrência.

Em tese, a matéria jornalística aponta para indícios de utilização de recursos financeiros, oriundos de pessoa jurídica e sem trânsito pela conta bancária de campanha de Jair Bolsonaro, para contratar empresas com a finalidade de bombardear usuários de telefonia com mensagens eleitorais. A conduta pode ser analisada sob dois ângulos: o custeio e o objeto da contratação.

Em relação ao custeio, desde 2015, com o banimento das doações eleitorais de pessoas jurídicas, as empresas tornaram-se fontes vedadas. No caso, teria havido utilização desse tipo de fonte e, considerando-se apenas o valor informado, em montante próximo a 20% dos gastos totais autorizados para as campanhas presidenciais.

Quanto ao objeto da contratação, os indícios são de destinação para finalidade ilícita. Mensagens de propaganda eleitoral, ainda que negativas, podem ser difundidas por SMS ou via Whatsapp para números cadastrados gratuitamente pelo próprio candidato ou partido. Mas não podem ter seu alcance potencializado quer pela utilização de cadastros de usuários feito por empresas, quer pelo impulsionamento executado por estas (art. 57-E, §§2º e 3º, Lei 9.504/97). A proibição se estende a terceiros que queiram colaborar com a campanha.

Assim, pode-se cogitar da prática de abuso de poder econômico (art. 14, §10, CR/88 e art. 22, LC 64/90) e de captação e gasto ilícito de recursos (art. 30-A, Lei 9.504/97) e, eventualmente, de fraude (art. 14, §10, CR/88).

Há ainda a possível tipificação do fato como crime. Primeiro, o “caixa 2”, que desde o mensalão virou um “puxadinho” do crime de falsidade ideológica para fins eleitorais, partindo do raciocínio que os recursos são omitidos da prestação de contas (art. 350, Código Eleitoral). Segundo, a divulgação de propaganda eleitoral inverídica com aptidão para exercer influência sobre o eleitorado (art. 323, Código Eleitoral).

A apuração desse ilícitos eleitorais e crimes depende, contudo, de que seja ajuizada a ação própria pelos legitimados. O abuso de poder econômico, a captação e o gasto ilícito de recursos e a fraude podem ser arguidos pela Procuradoria-Geral Eleitoral, pelos partidos e coligações e pelos candidatos. No momento atual e até a diplomação dos eleitos, há ensejo para a AIJE (ação de investigação judicial eleitoral) destinada a apurar abuso de poder econômico. Nos 15 dias seguintes à diplomação, a representação por captação ou gasto ilícito de recursos e a AIME (ação de impugnação de mandato eletivo) para apurar o abuso e a fraude podem ser manejadas.

Nesse meio tempo, medidas processuais destinadas a inibir o ilícito e a preparar as ações podem ser requeridas, pelos mesmos legitimidados.

Já a ação penal é de atribuição exclusiva da Procuradoria-Geral Eleitoral, que conta, na fase de investigação, com o suporte da Polícia Federal.

Portanto, não há a possibilidade de que o TSE aja sem ser por provocação. Trata-se aqui de respeitar uma fórmula basilar do Estado Democrático de Direito: quem tem o poder de condenar não deve ter o poder de iniciar o procedimento que leva à condenação. A "inércia" da Justiça Eleitoral não significa omissão, mas sim respeito à regra de que somente pode atuar se devidamente provocada pelas vias judiciais. Não à toa, o princípio em jogo é batizado de "princípio da inércia".

Até o momento, AIJEs foram propostas pela Coligação O Povo Feliz de Novo e pelo PDT[i] juntamente com a Coligação Brasil Soberano. As ações podem, em tese, levar à cassação da chapa Bolsonaro-Mourão e à inelegibilidade destes, de Luciano Hang (dono da Havan) e dos sócios das empresas contratadas para realizar o impulsionamento.

Na primeira das ações, já houve decisão de indeferimento de busca e apreensão de documentos e computadores, bem como da intimação do WhatsApp para apresentar plano de contingência que impeça o disparo em massa das mensagens. O Relator, Ministro Jorge Mussi, considerou que a ação, fundada apenas na notícia de jornal, não evidenciou a probabilidade de a lesão vir a ocorrer e, ainda, que o impedimento ao envio das mensagens poderia configurar censura prévia em matéria de propaganda.

Embora o primeiro fundamento possa ser considerado adequado, a vedação à censura prévia não parece dar resposta adequada no segundo ponto. Como dito, a ilicitude não está no conteúdo da mensagem apenas, mas na forma de contratação. Se é proibido pela lei eleitoral o disparo em massa para telefones cadastrados por empresas, não há proteção à manifestação do pensamento que faça relevar esse modo ilícito de propaga-la. Inibir o meio ilícito de propaganda, impedindo que algum esquema escuso tenha êxito, não é cercear liberdade de expressão.

De todo modo, o próprio WhatsApp se moveu. Notificou empresas que já teriam sido por ele identificadas como responsáveis por disparos em massa de mensagens eleitorais, para telefones cadastrados de forma ilegal. Usuários foram bloqueados.

A maior agilidade do WhatsApp fez com que muitas pessoas se enfurecessem com o TSE. Mas não há como comparar as atuações.

O WhatsApp, como empresa, pode tomar medidas com base em sua política de uso e mediante acesso direto a seus sistemas de controle. O TSE, além de precisar ser provocado, deve considerar a existência de requisitos legais que autorizem medidas interventivas na esfera jurídica privada. Aliás, o que não deve passar despercebido é que o Whatsapp já dispunha de informações sobre a movimentação ilícita das empresas e, no entanto, somente após a matéria da Folha de São Paulo resolveu agir.

E quanto à candidatura? Pode o TSE excluir Jair Bolsonaro do segundo turno desde logo?Essa medida significaria cassar a candidatura, o que somente poderá vir a ocorrer no julgamento final das ações eleitorais (AIJEs, AIMEs e representações) caso devidamente provados os ilícitos.

Uma cassação após eventual eleição de Bolsonaro exigiria que fosse realizado novo pleito, desde o primeiro turno. Em tese, se a cassação viesse antes do segundo turno, o caso seria de aplicar o art. 77, §4º da CR/88, convocando-se o terceiro colocado, Ciro Gomes, para a disputa com Haddad.

Mas se esse segundo cenário empolga parte do eleitorado, sua concretização não é factível pois, na prática, dependeria de uma decisão sumária, sem observância do devido processo legal. É aqui se se torna mais necessário perceber que a urgência por providências não tem como ser atendida pelo TSE.

Felizmente.

Afinal, quem luta pela legitimidade democrática das eleições deve estar atento para, na justa indignação ante possíveis práticas ilícitas, não endossar atos arbitrários - eles próprios, antidemocráticos. [i] Já se pode antecipar que o PDT será excluído do polo ativo da ação, uma vez que integra a Coligação Brasil Soberano e o partido político coligado não tem legitimidade para atuar de forma isolada nessa fase do processo eleitoral (art. 6º, §4º, Lei 9.504/97).

*Roberta Maia Gresta é doutoranda em Direito Político (UFMG) e assessora de Juiz Membro da Corte Eleitoral do TRE/MG. Esse texto foi elaborado no âmbito do projeto Observatório das Eleições de 2018, que conta com a participação de grupos de pesquisa de várias universidades brasileiras e busca contribuir com o debate público por meio de análises e divulgação de dados. Para mais informações, ver: www.observatoriodaseleicoes.org

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