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Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

Os netos da revolução

Jovens lúcidos e sem artimanhas políticas lutam pela democracia na Nicarágua

Sergio Ramírez
Cartazes em favor da democracia numa rua de Manágua.
Cartazes em favor da democracia numa rua de Manágua.OSWALDO RIVAS (REUTERS)
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Os jovens que saíram às ruas para dar a cara pela Nicarágua nasceram a partir dos anos noventa, ou já neste século, e portanto a revolução que derrubou Somoza é um fato ignorado para muitos deles, ou foi distorcido pela propaganda oficial, o que deve ser o mesmo.

São os netos de uma revolução longínqua ou ausente em sua memória, mas de todo modo a carregam nos genes, porque aquela se fez também por razões morais, diante da exasperação com uma ditadura familiar que acreditava ser proprietária do país, e quando se viu ameaçada não hesitou em recorrer à repressão mais cruel. E ao extermínio.

A ditadura de Somoza marcou os jovens como delinquentes, e a juventude se pagava com a vida. A cada dia apareciam corpos torturados e mutilados, ou simplesmente com um tiro na cabeça, na ladeira do Chumbo, a oeste de Manágua, um necrotério a céu aberto aonde as mães iam em busca de seus filhos desaparecidos. Por isso, o lema que se grita em coro hoje nas passeatas, “Não eram delinquentes, eram estudantes!”, deve soar tão familiar, um eco que conecta o passado dos avós com o presente dos netos.

Todo ardor juvenil desperta a imaginação e enche as palavras de sentido, lhes dá uma dimensão que as torna verdadeiras, e por serem verdadeiras se tornam parte de uma cultura novidadeira e fresca. Falam então as paredes, os cartolinas, e hoje em dia fala também o humor dos memes nas redes sociais. A improvisação engenhosa se carrega de legitimidade. É um reverso irreverente da mentira.

A improvisação engenhosa se carrega de legitimidade. É um reverso irreverente à mentira

“Tiraram tanta coisa de nós que nos tiraram até o medo”, diz um cartaz em papel de embrulho. E em outro: “Nunca tinha visto tantos valentes sem armas e tantos covardes armados”. Outro apregoa com muita sabedoria: “Quando se lê pouco se atira muito”. Uma moça escreveu com marcador de texto em sua barriga de grávida: “Que a sua mãe se renda sua mãe, porque a minha não”. Um que está entre meus favoritos: “Desculpe o transtorno, estamos mudando o país para você”. E este que tem indubitável peso histórico: “Há décadas em que nada ocorre, e há semanas em que ocorrem décadas”.

A distância, esse vazio através das décadas, faz com que os netos desprezem, ou rejeitem, não poucos dos símbolos sob os quais seus avós lutaram; e aqueles entre esses avós que hoje detêm o poder se tornaram indesejáveis para seus descendentes. Eles e os símbolos dos quais se apropriaram. A propaganda oficial opera milagres insalubres, como foi o abuso da bandeira rubro-negra, que de herança histórica passou a ser expropriada por uma seita.

Essa bandeira, levantada pelo general Sandino nas montanhas das Segovias em sua saga de seis anos pela soberania nacional, e cujas cores identificava em suas proclamas com os propósitos da sua luta – negro pelo luto da pátria agredida, vermelho pelo sangue derramado –, esteve nas barricadas durante a insurreição que deu fim ao somozismo.

E é preciso observar, porque é essencial, que entre ambas as lutas, a que terminou há quase quarenta anos, em 1979, e a de agora, há uma diferença fundamental: os netos brigam sem armas de guerra. São os que entraram com os mortos, numa resistência cívica sem precedentes, e desta maneira, embora com dor e sofrimento, e sacrifício, abrem ao país a oportunidade de uma mudança política: a passagem da ditadura para a democracia, sem uma guerra civil no meio.

Essa bandeira, à que volto, foi malversada. Não é estranho então que os netos a repugnem, e até lhe ateiem fogo, já que ignoram que se trata de uma herança de seus avós, por sua vez recebida de um tataravô longínquo e difuso, cuja figura também foi distorcida, e a vejam apenas como uma impostura que o novo poder familiar colocou no lugar da bandeira do país, cujas cores, azul e branco, multiplicam-se nas passeatas de protesto, nas fachadas das casas, nas janelas dos veículos, em lenços e tiaras, nas bochechas dos jovens manifestantes.

Uma reivindicação assim, sem caudilhos nem aprendizes de caudilhos, encabeçada por jovens lúcidos e transparentes, felizmente inexperientes em artimanhas políticas, é o que nos dará uma nova Nicarágua. É a hora dos netos.

SERGIO RAMÍREZ é escritor nicaraguense e ganhador do Prêmio Cervantes 2017.

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