Um Brasil à prova de férias
Donde o cronista do Crato do Cariri vai ao Crato do Alentejo e não consegue escapar do pesadelo
O Brasil do pós-golpe é um país à prova de férias. Você pode ir para Ushuaia, o dito fim do mundo da Patagônia argentina, e mesmo naquela geleira, alguma criatura misteriosa estudada por Darwin na expedição Beagle lhe interromperá: “Que vergonha!”. Você pode até não saber se o bicho esquisito está se referindo à reforma trabalhista do Temer ou ao último caso de racismo ou homofobia, mas certamente saberá que uma desgraça acaba de ser cometida.
Agora mesmo estou no Crato, não o meu Cratinho do Cariri cearense, falo do Crato homônimo do norte do Alentejo — uma cidade medieval do século XIII que deu nome ao munícipio do sertão —, quando uma “conterrânea” portuguesa, uma senhorinha enlutada, interrompe sua sesta e chacoalha meu juízo: “Que passa com vosso país?” Só me restou dizer que os cratenses do Nordeste brasileiro, pelo menos, estão na fileira da resistência, ufa. Tomara que eu ainda tenha razão a essa altura, vai saber...
Mesmo que você se desligue das redes sociais e do noticiário, o Brasil é um país que não dá férias, onde quer que esteja no mapa mundi. Parece mais uma tortura incluída como bônus no pacote da junta golpista, aqui compreendido o poder temerário, o legislativo e o judiciário que vai da comarca ressentida de Curitiba à corte das togas pretas. Vade retro, satanás das costas-ocas, como se diz, por prevenção, em todos os Cratos do cosmo.
E repare que nem estou a falar do trambique da reforma dos amigos parlamentares e midiáticos do Temer. Fico passado com uma imprensa que foi favorável a esse miserável. Você sabe que, doravante, o tempo de trocar de roupa no trabalho pode ser descontado dos seus ganhos? Cadê os paneleiros? Deixa pra lá, já era. Por quem dobram os sinos?
Voltemos ao norte do Alentejo. À prova de férias, só me restou levar Irene e Larissa, amores meus, para desfrutar o menu do dia alentejano: sopa de feijões com verdurinhas, codornizes assadas, mousse de chocolate e muitos doces de freiras. Sim, o arroz levava um aroma de alecrim e as azeitonas iniciais eram, cada caroço à sua maneira de brincar na boca, únicas. O vinho da casa, cratense, óbvio. Na taberna de nome Cascata, como jornalista, me senti à vontade. Os locais começaram a adentrar o ambiente, naquele almoço precoce ao meio-dia, sob os javalis e raposas empalhados, juro que não saberia distinguir tais criaturas.
Chifres gigantes adornavam também o salão de pedras pintadas de branco, com detalhes em amarelo ouro, assim como em toda cidade. Ao lado da mesa dos policiais rodoviários, que falavam sobre crimes comuns e da excelência dos queijos regionais, uma lareira em cinzas. O velho Harry S. Truman chega, põe seu chapéu em um dos chifres do alce, chama a garçonete cratense com a piscadela do pedido de sempre.
Irene destroi os ossinhos da codorniz como o papai na infância, que destreza -o avô de Irene sempre foi da caça e pesca. Dentinho novo é memória. O galego motorista da Transcrato, a viação do sítio, chega com sua amada e pede um refrigerante de laranja. Estamos quase na Espanha, ele me diz.
Mais um vinho e a garçonete nos conta que é casada com um homBem de Teófilo Otoni, Minas Gerais. Ensaiamos falar sobre o Brasil por causa das afinidades eletivas. Súbito, disfarçamos todos, como se num pacto de silêncio entre o Cariri e o Alentejo, dois ceuzões azulados do mundo perdido falassem por nós todos.
Xico Sá, escritor e jornalista, é autor de “Os machões dançaram -crônicas de amor & sexo sobre homens vacilões” (editora Record). Comentarista dos programas “Papo de Segunda” (GNT) e “Redação Sportv”.
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