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Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

O feminismo é selvagem?

Não entendo como, depois de séculos de maus tratos, as mulheres ainda continuem nos aguentando

Javier Cercas
Marcha das Vadias, no Rio de Janeiro, em 2014
Marcha das Vadias, no Rio de Janeiro, em 2014Fernando Frazão (Agência Brasil)
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Não nos enganemos: nós, homens de minha geração, já nascemos machistas. Os da minha geração, os da anterior, e assim até o infinito. A culpa, claro, é de nossas mães, coisa que sei muito bem porque sou o único macho em uma casa com quatro fêmeas e minha mãe nunca me deixou lavar um pires que fosse, enquanto minhas irmãs sempre a ajudavam nas tarefas da casa (um beijo para você, mamãe!). Não sei como são os meninos de hoje em dia. A julgar pelo meu filho, são muito melhores do que nós; a julgar pelas estatísticas, iguais ou piores. Pelo menos dessa vez, as estatísticas estão realmente certas.

Mas a verdade verdadeira é que a culpa de tudo isso não é de nossas mães (mais um beijo para você, mamãe!). Inacreditavelmente, desde o começo dos tempos, os homens temos visto as mulheres como seres inferiores, pouco mais do que bichinhos domésticos criados para tornar a nossa vida mais agradável; e isso não foi feito apenas pelos homens normais e comuns, mas também pelos mais sábios dos sábios que já existiram neste mundo. Claro que aqui também existem exceções. A mais conhecida é a de um antigo veterano de Lepanto chamado Miguel de Cervantes, que viu suas irmãs serem humilhadas e insultadas pelos estúpidos de plantão e recheou seus livros com mulheres valentes que não se cansam de denunciar os desaforos dos homens e de reivindicar sua dignidade e sua liberdade. Sim, isso é muito Dom Quixote, muito Dom Quixote. Mas o que ninguém diz é que, se Dom Quixote estivesse vivo, santificando todos os caminhos com a passagem majestosa de seu heroísmo (como disse Rubén Darío), não há nenhuma dúvida de que se dedicaria exclusivamente a perseguir por terra, mar e ar todos esses canalhas que maltratam e matam mulheres; e que, tendo-os captado, cortaria fora sem nenhuma hesitação os seus pintos e testículos e os enfiaria nas respectivas bocas, para em seguida lhes costurar os lábios com barbante e largá-los em plena aridez de Los Monegros para morrerem ao sol padecendo de terríveis tormentos. Isso é o que Dom Quixote faria, e Dom Quixote nunca se engana.

Há coisas que eu não entendo. Não entendo como, depois de séculos e séculos de impiedosos maus tratos e exploração, as mulheres ainda continuam nos aguentando, amando e cuidando de nós. Não consigo entender como é possível que, enquanto covardes de merda matam mulheres indefesas todos os dias, não brote feito cogumelo uma porção de batalhões de mulheres armadas que imitem Dom Quixote e façam justiça com as próprias mãos, dedicando-se a cortar pintos e testículos e fazendo tudo o mais, inclusive a coisa do sol de Los Monegros. Mas o que eu não consigo entender de jeito nenhum é como, depois de ser governadas durante milênios por nós – essencialmente um bando de descerebrados embriagados de testosterona e ocupados apenas em beber cerveja e ver quem é mais macho, enquanto provocamos uma tragédia atrás da outra--, as mulheres não nos tenham vetado terminantemente o acesso ao poder nem nos tenham punido com a obrigação de permanecer de castigo ajoelhados durante os próximos três séculos. Em resumo: há quem pense que o feminismo tem se inclinado há algum tempo para o extremismo, indo longe demais; pois o que eu acho é que atualmente, e até segunda ordem, até mesmo a forma mais radical de feminismo é moderada demais.

Há solução para o nosso milenar e vomitivo machismo estrutural? Em curto prazo, duvido, pelo menos no que me diz respeito. Mas também tenho observado que algumas coisas podem ser úteis: por exemplo, ter uma filha adolescente. Com efeito, um amigo meu tem uma, e, apavorado diante dos perigos que a cercam, criou uma Associação de Pais de Filhas cujo símbolo é uma tesoura de poda e cujo lema é o seguinte: “capar, capar, capar”. Esse é o caminho.

Para finalizar. Isso tudo me ocorreu ao ler um maravilhoso romance em quadrinhos chamado Más vale Lola que mal acompañada [Antes Lola do que mal acompanhada, trocando, no dito popular, sola -só em espanhol - por Lola]. Ele tem como protagonista uma personagem chamada Lola Vendetta, que aparece na capa portando uma espada manchada com sangue quixotesco; seu lema: “O feminismo não deve ser sofrido, mas desfrutado”. Como todos os heróis, Lola Vendetta não tem idade; sua autora, Raquel Riba, tem 27 anos. Que Deus abençoe as duas, e você também, mamãe.

Javier Cercas (Ibahernando, Cáceres, 1962) é professor de literatura espanhola na Universidade de Girona. Publicou vários livros de sucesso, entre eles “Soldados de Salamina’, adaptado para o cinema por David Trueba. Além de seu lado romancista, ele colabora regularmente com o EL PAÍS.

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