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PEDRA DE TOQUE
Coluna
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As séries

Somente em uma série televisiva se concebe que tenha ganhado as eleições presidenciais um senhor como Donald Trump

Mario Vargas Llosa
Ahn Young-joon (AP)

A televisão finalmente encontrou um produto original e divertido do qual está tirando excelente proveito: as séries. Elas existem há muito tempo no cinema, pois me recordo de que, em minha longínqua infância cochabambina (na Bolívia), todos os domingos, com meu amigo Mario Zapata, o filho do fotógrafo da cidade, depois da missa na La Salle íamos ao cine Achá para ver os três episódios do filme em série da vez – costumavam ter doze–, aventureira e tranquilizante, porque nela os bons ganhavam sempre dos maus. Mas depois o cinema as esqueceu, e agora a televisão as ressuscitou com sucesso.

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São geralmente muito bem feitas, com grande estardalhaço na mídia, e mantêm a continuidade, apesar de os roteiristas e diretores mudarem de um capítulo para outro e as histórias se alongarem ou encurtarem conforme o interesse que despertem nos telespectadores. Costumam ser entretenimento puro, sem maiores pretensões, com algumas exceções, como The Wire, fascinante exploração dos guetos e bairros marginais de Baltimore em que, acreditem ou não, quase todos os atores negros que tão bem pronunciam entredentes a gíria local... são ingleses!, e Borgen, sobre as intrigas e dilemas políticos desse civilizado país que é a Dinamarca. Mas talvez a diferença mais significativa entre as séries que distraem milhões de telespectadores e as que eu via no cine Achá é que nas de agora invariavelmente os maus vencem os bons. Nelas, se alguém comete a impertinência de compará-las com o mundo real, ocorrem coisas disparatadas, absurdas, loucas. Mas isso nada importa, porque uma ficção, seja nos livros, no palco ou em uma tela, se estiver bem contada, é crível, quer coincida ou destoe da vida que conhecemos através da experiência.

Algo a admirar nas séries norte-americanas, além da qualidade técnica e da formidável variedade de cenários e figurantes de que costumam dispor, é a liberdade com que utilizam fatos e personagens da história recente, geralmente desnaturalizando-os, e a ferocidade com que, frequentemente, manipulam e distorcem as instituições e autoridades para conseguir maiores efeitos na narrativa e surpreender e envolver mais o seu público. House of Cards, por exemplo, uma das melhores, descreve a irresistível ascensão no labirinto do poder norte-americano de um casal de políticos inescrupulosos, cínicos e delituosos que, deixando ao longo de suas peripécias todo tipo de vítimas inocentes, incluindo algum assassinato, chegam nada menos que à Casa Branca com toda a legalidade. A série é muito divertida, os atores são excelentes, e a moral da história que fica se remoendo na memória do telespectador é que a política é uma atividade desprezível e criminosa, na qual só triunfam os canalhas, e na qual as pessoas decentes e idealistas são sempre esmagadas.

Não menos negativa é a visão da realidade política estadunidense e internacional na magnífica Homeland, cuja sexta temporada acaba de começar e que eu sigo com a avidez com que seguia, quando jovem, as sagas de Alexandre Dumas. Aqui não é a presidência dos Estados Unidos que está contaminada, mas nada menos que todas as agências de inteligência, a começar pela celebérrima CIA, cuja direção é facilmente infiltrada por agentes russos ou jihadistas ou a mando de imbecis aos quais qualquer inimigo faz de bobo ou corrompe, sem que os heroicos Carrie Mathison – um personagem psicopatológico que parece criado para o divã do doutor Freud –, Peter Quinn e Saul Berenson possam fazer nada para salvar o país e o mundo livre de sua inevitável derrota ante as forças do mal.

As séries são uma continuação direta das radionovelas e telenovelas e, sobretudo, dos romances seriados do século XIX – os famosos folhetins –, que, a princípio na França e Inglaterra, mas depois em toda a Europa, os jornais publicavam semanalmente, e nos quais incorreram alguns grandes escritores como Dickens, Balzac e Dumas. Têm como denominador comum a agilidade, a efervescência da narrativa, a indisfarçável vontade de fazer os leitores ou espectadores se divertirem e nada mais, a falta de ambição intelectual ou estética e a simplicidade elementar da estrutura. E, também, a inverossimilhança. Nelas tudo pode acontecer, porque seus autores e seu público fizeram de cara um pacto claríssimo: acreditar que se trata de ficção, invenções divertidas que não têm nada a ver com a realidade.

Isso é mesmo verdade? Se esmiuçarmos com atenção o ano que acaba de terminar, no aspecto fundamentalmente político essa verdade se parece muito com uma mentira. Porque somente em uma série televisiva se concebe que tenha ganhado as eleições presidenciais um senhor como Donald Trump, que, sem que sua voz trema, diz que os mexicanos que emigram para os Estados Unidos são “ladrões, estupradores e assassinos”, que o Brexit é um exemplo que outros países europeus deveriam seguir, que menospreza a OTAN tanto como à União Europeia e que admira Vladimir Putin por sua energia e liderança. As façanhas do ex-agente da KGB na Alemanha Oriental, agora no comando da Rússia, não têm por acaso algo das proezas terríveis e inauditas desses vilões das séries? Desde que subiu ao poder, engoliu parte da Ucrânia, mantém os enclaves coloniais da Abkházia e da Ossétia do Sul na Geórgia, ameaça invadir os países bálticos e, graças à sua intervenção armada na Síria, tem agora uma influência e protagonismo de primeira ordem no Oriente Médio.

Diferentemente do que ocorria durante a URSS, os jornalistas e opositores incômodos não vão para o Gulag, só morrem envenenados, em ataques a tiros ou espancamento nas ruas por misteriosos delinquentes que depois desaparecem como que num passe de mágica. Na Turquia, uma suposta tentativa de golpe de Estado deu margem à repressão mais selvagem e ao retorno do obscurantismo religioso e o despotismo que se acreditava ser coisa do passado. E a Venezuela, potencialmente um dos países mais ricos da Terra, no ano de 2016 chegou, na frenética corrida para a desintegração para a qual é conduzida pelo bando de demagogos e ineptos que a governam, a uma espécie de apoteose da crise terminal na qual o “socialismo do século XXI” a mergulhou. Será esse o destino da França se, como insinuam as pesquisas, a senhora Marine Le Pen, admiradora sem disfarces de Trump e de Putin, ganhar as próximas eleições presidenciais?

Ou seja, depois de tudo, bem se diria que o melhor espelho das coisas horripilantes que se sucedem ao nosso redor neste despontar do ano 2017 não está na grande literatura nem nos filmes realmente criativos, mas nessas séries que, como os “personagens transitáveis”, assim chamados por Flaubert, são meras pontes que cruzamos e esquecemos no mesmo instante durante esses passeios que damos para desanuviar a cabeça depois de muitas horas de trabalho.

Então, já que as coisas andam deste jeito sinistro, vamos nos distrair vendo séries na tela da TV, neste mundo surpreendente que, depois da extinção do comunismo, alguns ingênuos acreditávamos que havia empreendido um caminho resoluto para a liberdade e a prosperidade em vez de se transformar em nada mais, nada menos, do que um reality show.

Madri, janeiro de 2017

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