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Ameaças para o planeta das quais não se ouve falar porque estão em chinês

Um estudo alerta que os idiomas são uma barreira significativa para a ciência mundial

Manuel Ansede
Uma mulher dá água a porcos em uma fazenda de Liaocheng, na China.
Uma mulher dá água a porcos em uma fazenda de Liaocheng, na China.REUTERS/Stringer
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Em janeiro de 2004, quando alguns vírus perigosos da gripe aviária reapareceram de maneira generalizada no planeta, cientistas chineses descobriram que uma das cepas, a H5N1, havia infectado porcos. Era uma novidade alarmante, porque alguns especialistas acreditam que foram os suínos que serviram de trampolim para o homem na pandemia de gripe de 1918, que matou mais de 40 milhões de pessoas em todo o mundo. Mas poucos estudiosos ficaram sabendo dessa descoberta inquietante. Estava em chinês.

Os cientistas do Instituto de Pesquisa Veterinária de Harbin, no nordeste da China, publicaram seus resultados naquele mesmo mês de janeiro em uma revista especializada chinesa. Nem a Organização Mundial de Saúde (OMS) nem a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) só souberam do anúncio mais de seis meses depois, segundo alertou mais tarde a revista Nature. A humanidade esteve sob maior risco por causa de barreiras linguísticas.

Em 2004, uma descoberta alarmante sobre a gripe aviária passou despercebida durante meses porque foi publicada em uma revista chinesa

“Trata-se de um exemplo clássico”, afirma o biólogo espanhol Juan Pedro González Varo, atualmente na Universidade de Cambridge (Reino Unido). Sua equipe acaba de mostrar que os idiomas continuam sendo “um obstáculo significativo” para a ciência mundial. Os pesquisadores buscaram no Google Acadêmico todos os documentos científicos — estudos, livros, relatórios e teses — relacionados com a preservação do meio ambiente, publicados em 2014 nos 16 principais idiomas do mundo. O resultado foi “bastante surpreendente”, em suas próprias palavras: dos mais de 75.000 documentos, apenas 64% estavam em inglês, a língua franca da ciência. O restante aparecia em espanhol (13%), português (10%), chinês (6%) e francês (3%), principalmente.

“Em tese, concentrar-se apenas na ciência escrita em inglês poderia omitir 36% do conhecimento existente”, advertem os autores em seu estudo, publicado na revista PLOS Biology. E, por outro lado, o desconhecimento do inglês é um impedimento para se ter acesso à ciência de ponta. Uma pesquisa realizada pelos mesmos autores junto a 24 diretores de reservas naturais na Espanha revelou que 54% identificaram o idioma como um obstáculo na hora em empregar os últimos conhecimentos científicos no manejo de seus territórios.

González Varo traz mais exemplos. A Fundação para a Preservação e o Uso Sustentável das Zonas Úmidas, da Argentina, produziu um relatório abrangente sobre o papel das turfeiras na mitigação das mudanças climáticas. Mas, segundo lamenta o biólogo, só está disponível em espanhol. “Essa informação é muito valiosa, mas poderia ser perdida se um cientista escocês, por exemplo, fizer uma compilação das informações disponíveis”.

“Em tese, concentrar-se apenas na ciência escrita em inglês poderia omitir 36% do conhecimento existente”

Outro autor do novo estudo, o japonês Tatsuya Amano, também da Universidade de Cambridge, destaca que o Ministério do Meio Ambiente do Japão possui uma base de dados de biodiversidade com um milhão de registros de espécies, disponível apenas em japonês.

Na opinião de González Varo e seus colegas, “as barreiras linguísticas são um problema particularmente grave nas ciências ambientais”. Os autores alertam para o possível surgimento de preconceitos. Os resultados positivos, como as estratégicas de preservação bem-sucedidas, são publicadas com maior facilidade nas revistas científicas de maior impacto, em inglês. Mas se forem apenas buscados resultados neste idioma, muitos fracassos podem passar despercebidos, por exemplo. Pode haver uma super-representação dos êxitos.

“Queremos enfatizar que as revistas científicas devem se envolver”, diz o biólogo espanhol, que até 2015 trabalhou na Estação Biológica de Doñana, na Andaluzia. Sua equipe propõe que as revistas especializadas publiquem em seus sites resumos promocionais traduzidos para os principais idiomas, sobretudo dos artigos com resultados relevantes para a gestão de reservas naturais. “Traduzir custa dinheiro. As revistas podem pedir esse dinheiro aos autores ou oferecer o serviço para eles, se demonstrarem que não têm recursos suficientes”, sugere González Varo. Os autores reconhecem que não se trata de um objetivo fácil, mas atingi-lo trará “amplos benefícios” na hora de enfrentarmos os problemas ambientais.

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