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Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

Bem-vindo ao século XXI

Uma nova ordem mundial parece inevitável, mas ainda não é possível distinguir seus fundamentos

Joschka Fischer
Aissa Al Hadji Ram, 10 filhos, vive em um acampamento para refugiados.
Aissa Al Hadji Ram, 10 filhos, vive em um acampamento para refugiados.Sylvain Cherkaoui
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O início de 2016 foi tudo menos tranquilo. A queda das Bolsas na China desestabilizou os mercados em todo o mundo. As economias emergentes parecem paralisadas. O preço do petróleo desabou e colocou em crise os produtores. A Coréia do Norte mostra seu poder nuclear. E na Europa, a crise dos refugiados fomenta uma onda tóxica de nacionalismo que ameaça despedaçar a União Europeia. Adicionamos as ambições neoimperiais da Rússia e a ameaça do terrorismo islâmico, e a única coisa que falta para completar um ano com aparência de maldição profética seria que aparecesse um cometa no céu.

Para onde olharmos há caos crescente. Parece que a ordem internacional que foi forjada na fornalha do século XX está se esgotando e não temos nenhum indício do que virá em seu lugar.

Os desafios que enfrentamos são conhecidos: globalização, digitalização, alterações climáticas e assim por diante. O que não está claro é o contexto em que surgirá a resposta (se é que surgirá). Em que estruturas políticas, por iniciativa de quem e segundo quais regras serão negociadas (ou liquidadas pela força, se negociar for impossível) estas questões? A ordem política e econômica não surge simplesmente do consenso pacífico ou da imposição não discutida do mais poderoso. Sempre foi resultado de uma luta pelo domínio (muitas vezes brutal, sangrenta e prolongada) entre potências rivais. Somente através do conflito são estabelecidos novos pilares, instituições e atores de uma nova ordem.

A ordem liberal ocidental que tem governado desde o fim da II Guerra Mundial baseou-se na hegemonia dos EUA. Como potência verdadeiramente global, foi dominante não apenas no campo do poder militar (além do econômico e financeiro), mas em quase todas as dimensões do soft power (cultura, língua, meios de comunicação, tecnologia e moda).

A possibilidade nefasta do suicídio da Europa não é mais impensável

A Pax Americana que garantiu um alto grau de estabilidade global começou a falhar (especialmente no Oriente Médio e na Península da Coreia). Embora os Estados Unidos continuem a ser a primeira potência planetária, já não tem a capacidade ou vontade de ser a polícia do mundo ou fazer os sacrifícios necessários para garantir a ordem. Por sua própria natureza, um mundo globalizado evita a imposição da ordem do século XXI.

E mesmo que o surgimento de uma nova ordem mundial seja algo inevitável, seus fundamentos ainda não podem ser distinguidos. Parece improvável que seja liderada pela China; o país continuará voltado para si mesmo e concentrado na estabilidade interna e no desenvolvimento, e é provável que suas ambições sejam limitadas ao controle de sua vizinhança imediata e mares que o rodeiam. Além disso, não possui (em quase nada) o soft power necessário para tentar se tornar uma força de ordem mundial.

Também não parece que estes tempos de transição turbulenta vão acabar com o surgimento de uma segunda Pax Americana. A resistência das potências regionais e possíveis contra-alianças seria excessiva. Na verdade, é provável que o principal desafio dos próximos anos seja lidar com a perda de influência dos Estados Unidos. Não existe um marco estabelecido para a retirada de um condutor global. Uma potência dominante pode cair como resultado de uma luta pelo domínio, mas não por retirada voluntária porque o vazio de poder resultante colocaria em perigo a estabilidade de todo o sistema. Espera-se que o próximo presidente norte-americano, seja quem for, passe seu mandato supervisionando o fim da Pax Americana.

Para a Europa, isso significa um problema igualmente difícil. Será que o declínio da Pax Americana é o prelúdio de uma crise ou um conflito inevitáveis? A ascensão do neonacionalismo em todo o continente parece apontar nessa direção, e as implicações são desalentadoras.

A possibilidade nefasta do suicídio da Europa não é mais impensável. O que vai acontecer se a política da chanceler alemã Angela Merkel em relação aos refugiados significar o fim do seu governo, se a Grã-Bretanha abandonar a União Europeia ou a populista francesa Marine Le Pen ganhar a presidência? Uma queda ao abismo é o resultado mais perigoso que podemos imaginar, se não for a mais provável. É claro que o suicídio é evitável. Mas aqueles que atacam alegremente a posição de Merkel, a identidade europeia do Reino Unido e os valores iluministas da França ameaçam minar a beirada sobre a qual todos nós nos encontramos hoje.

Joschka Fischer foi ministro de assuntos exteriores da Alemania e vice-chanceler entre 1998 e 2005.

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