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Coluna
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Kafka é brasileiro

Os incriminados e condenados pela Lava Jato pretendem inverter a situação transformando os juízes em acusados por tamanha ousadia

Juan Arias
O juiz Sérgio Moro, em abril do ano passado.
O juiz Sérgio Moro, em abril do ano passado.Fabio Rodrigues Pozzebom/ Agência Brasil

Está em curso no Brasil uma dura batalha dentro do processo da Operação Lava Jato, entre a justiça que acusa de corrupção políticos e empresários importantes e o poder que esses personagens tiveram e ainda têm.

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Os incriminados e condenados pretendem inverter a situação transformando os juízes em acusados por tamanha ousadia.

Nessa batalha, a sociedade continua hoje do lado dos juízes, já que a maioria dos brasileiros coloca, pela primeira vez, o tema da corrupção no topo de suas preocupações.

E amanhã? A justiça conseguirá mostrar ao cidadão comum que não devem existir dois pesos e duas medidas na hora de julgar e condenar? Ou o poder acabará convencendo-a de que os juízes e promotores estão abusando de suas prerrogativas e que essas devem receber limites legais?

Não seria melhor, dizem advogados e políticos, que, por exemplo, esses grandes empresários, acusados de roubar milhões dos cofres públicos, voltem a ficar livres “para continuar criando empregos”? Não seria melhor que os jornalistas, ao invés de ajudar a justiça em suas investigações e divulgação da corrupção, se dediquem a coisas mais amenas e divertidas, que levantem o ânimo e a alegria das pessoas?

Isso me fez lembrar o conto Um Artista da Fome do escritor judeu Kafka, o fustigador do poder da burocracia.

O que Kafka quis mostrar com a história do jejuador do circo e com o simbolismo da jaula na qual foi substituído por uma “bela e poderosa pantera” para alegria do grande público?

Se é sempre difícil extrair todas as intenções dos escritores que deixaram marca na literatura mundial, é ainda mais com Kafka, que deu origem ao termo “kafkiano” para definir as situações inacreditáveis do poder e da burocracia.

Em geral, os artistas costumam dizer que os outros encontram em suas obras significados que eles não haviam pensado. Presenciei isso uma vez com o cineasta e mestre dos cineastas Federico Fellini. Um jornalista em Roma comentava sobre seu filme E la Nave Va quando o cineasta abriu seus olhos brilhantes de adolescente travesso e exclamou: “Que maravilha! Tudo isso está no meu filme? Nunca teria imaginado”.

E, entretanto, essa é a força da arte e da literatura de renome.

O personagem que Kafka escolheu para seu enigmático conto parece banal. É também um personagem que em sua época, como ele declara, já havia perdido o interesse do grande público.

Os jejuadores deixavam de comer durante 40 dias e 40 noites fechados em uma jaula como espetáculo visível para adultos e crianças. Por que o escritor quis desenterrar os jejuadores?

Kafka não se limita a contar a história de um simples jejuador, introduz nele alguns elementos em que é difícil, conhecendo a relação crítica do autor com o poder, não interpretar também no âmbito político e social.

O jejuador do conto de Kafka não é um simples entretenimento usado no passado para divertir o público, já que possui uma característica curiosa: gostava de jejuar. Não comia, mas também não sentia fome: “Só ele sabia, só ele e nenhum outro, como o jejum era fácil. A coisa mais fácil do mundo”.

A figura do jejuador que não tinha fome poderia ser uma parábola de alguém que prefere uma vida austera ao esbanjamento? Não poderia ser uma contra-metáfora do corrupto que deseja acumular, devorar o que não é seu?

Quando as pessoas se cansam do jejuador os donos do circo o tiram da jaula. Quem Kafka coloca em seu lugar? Uma bela e forte pantera negra cuja vista dava prazer aos visitantes já que “o formoso animal se agitava e dava saltos”. E Kafka acrescenta irônico: “Não lhe faltava nada. Nem sequer parecia sentir falta da liberdade”.

As pessoas, esquecidas do jejuador que não sentia vontade de comer nem possuir e nem por isso era infeliz, preferiu o espetáculo da poderosa pantera que não percebe estar presa em uma jaula sem liberdade.

O medo de hoje, no Brasil, é que a opinião pública, nessa luta da justiça contra os corruptos que sequer da cadeia demonstram medo, e a batalha do poder para que saiam ilesos, possa desencantar-se dos honestos que não gostam de roubar e enriquecer.

A aparente beleza da pantera satisfeita, mas enjaulada, que pode simbolizar o poder sem escrúpulos, pode acabar atraindo a atenção de quem, em uma espécie de síndrome de Estocolmo, prefere continuar votando no poderoso corrupto ao invés do simplesmente honrado.

O falecido romancista brasileiro João Ubaldo Ribeiro alertou em um de seus artigos sobre a dificuldade dos brasileiros de manifestarem-se contra a corrupção. Com sua ironia sem amargura, o romancista escreveu que o sonho de muitos era “ter um político corrupto na família”, que resolva todos os problemas.

A sátira de Kafka e a ironia de Ubaldo são dois elementos para se levar em consideração quando as pessoas forem às urnas, onde acabam realizando, muitas vezes, resultados verdadeiramente kafkianos.

No Brasil e além.

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