DiCaprio: “Hollywood foi vergonhosamente racista com os indígenas”
Sua interpretação limite em ‘O Regresso’ pode lhe render o primeiro Oscar Nesta entrevista se mostra muito crítico a seu setor
Dizem que a mãe DiCaprio deu a seu filho o nome Leonardo porque, quando estava grávida, sentiu o bebê dar um chute diante de uma pintura de Leonardo Da Vinci. Estava fadado a ser artista, sem dúvida. Mas, escutando-o falar hoje, parece estranho que uma das maiores estrelas do firmamento cinematográfico não tenha dado um chute no dia em que sua mãe jogou um papel no chão ou descartou vidro no contêiner de lixo orgânico. Leonardo DiCaprio está dedicado, e como, à causa ambiental. Gastou 3,6 milhões de dólares (15 milhões de reais) em uma casa ecológica em Battery Park, Nova York. Doou um milhão de dólares para salvar o tigre asiático. É membro do conselho do World Wildlife Fund (WWF). Tem uma fundação com seu nome dedicada à proteção das espécies ameaçadas de extinção e produziu vários documentários para conscientizar o público, alguns deles bastante bons.
“Hollywood foi vergonhosamente racista com a população indígena dos Estados Unidos. Tratou-a como uma caricatura formada por entes etéreos e espirituais”
Mas mesmo assim, chama atenção sua insistência em cada aparição pública ou entrevista. O que tem esse homem com a mudança climática? Por que só fala disso, mesmo quando lhe perguntam sobre questões pessoais ou sobre seus filmes? É uma maneira muito mais elegante de evitar terrenos incômodos que o veto às perguntas íntimas (também presentes nesta entrevista, aliás)? Será a crise dos 40? Ou será que, se não fosse pelos polos, o Titanic não teria se chocado com um iceberg e sua carreira seria total e absolutamente diferente?
Recebe, muito bonito de terno cinza e camisa branca, este jornalista depois de o fazer esperar, como toda estrela que se preze, quase uma hora. A entrevista é em um hotel de Nova York com uma vista privilegiada que atrai seu olhar mais do que o entrevistador. Mas o mais curioso é essa atitude que mostra em alguns momentos, de jovem empreendedor em plena sessão de networking e com algum tique nervoso. Está cruzando os dedos para que esse mundo, que certamente ainda o olha com certa reticência, o leve a sério, e uma das formas que planejou para que isso se torne realidade é um documentário sobre a mudança climática que está preparando.
“Quando estava na escola, sonhava ser biólogo ou ator. No fim, a segunda opção acabou ganhando, mas depois de Titanic [em 1997] decidi que precisava de um descanso. Foi muito intenso, não a filmagem, que eu adorei, mas o que aconteceu ao redor. Então me refugiei em minha outra grande paixão, que era o meio ambiente”, diz. “Trabalhei a longo prazo, consegui financiamento, tornei-me ativista e criei uma fundação. Vou ser sincero: se me parar na rua, a única coisa de que quero falar é mudança climática”. Sério? “O que está acontecendo neste período histórico é um dos momentos mais críticos que já vi na vida. As temperaturas de julho passado foram as mais altas de que se tem registro. Los Angeles viveu, em outubro, uma onda de calor sem precedentes. Estamos neste gigantesco momento crítico e a questão é: até que ponto? Quando será tarde demais?”.
Antes de podermos mudar de assunto, começa a explicar que está fazendo um documentário sobre a questão em 15 países. “Breve iremos à Índia e à China. Espero que os especialistas de cada área me concedam entrevistas. É o momento mais louco da história desde que existem registros sobre as temperaturas”. Pausa: “É minha grande paixão, algo em que estive envolvido nos últimos 15 anos. Não que seja uma época emocionante para falar disso, pelo contrário, é aterradora. E vou fazer todo o possível para que as pessoas se conscientizem e se envolvam”. É assim o tempo todo.
Na verdade poderíamos remontar bem longe com esta veia naturalista. Seus documentários tratam de tubarões (Worst Shark Attack Ever), vacas (Cowspiracy: The Sustainability Secret, sobre as carnes processadas) e gorilas (Virunga). Este último é, de longe, o de maior sucesso. E não se pode esquecer que, embora poucos se lembrem e ele mesmo não goste de recordar, sua primeira aparição na tela foi, lá por 1989, na série de televisão The New Lassie.
Entretanto, depois de ter sido O Lobo de Wall Street ou interpretar um verdadeiro animal como Howard Hughes em O Aviador, chega seu papel selvagem definitivo com O Regresso, novo filme do mexicano Alejandro González Iñárritu (Birdman). Nele, interpreta Hugh Glass, um homem que, na segunda década do século XIX, teve um filho com uma índia norte-americana e lutou contra os brancos para defender seu rebento. Neste filme, DiCaprio grunhe, grita, ofega e quase não fala (quando o faz, é muitas vezes em línguas indígenas). É a época em que os primeiros europeus enfrentavam essa nova terra, o Novo Mundo, e seu entorno impenetrável. O ator passa da felicidade à vingança e, daí, à revelação. Todo um desafio interpretativo que, a propósito, o confronta com seu herói pessoal: a mãe natureza.
“Para ser sincero, me preparei pouco para ‘O Regresso’. Como a natureza também é um personagem, eu devia reagir a esse entorno, e isso não pode ser planejado”
Como foi rodar um filme tão marcado pela paisagem? É um filme único e uma história muito linear, radicalmente direta. Um homem nas mãos da morte e da natureza, que sobrevive a esses elementos, que encontra seu destino e também algo mais profundo dentro de si mesmo. Por outro lado, a ação se desenrola num período da história dos Estados Unidos que acho que nunca foi mostrada no cinema: o momento em que este país era como o Amazonas, um terreno ignoto, quando o capitalismo começou a se dirigir rumo ao Oeste. Antes das febres do ouro e do petróleo; era a primeira incursão do homem branco na população indígena e sua primeira tentativa de levar as riquezas à Europa. E claro: matamos os animais, deslocamos os indígenas, transamos com suas mulheres e cortamos as árvores.
Mas o próprio Alejandro González Iñárritu diz que, além da questão histórica, o filme é sobretudo um caminho emocional de um pai rumo a seu filho. Concorda? O filme é tudo isso. É certo que não há apenas registros históricos desse período. Trata também de homens em busca de uma vida, de uma forma de sobreviver. Assim é meu personagem: um homem profundamente afetado pela guerra, que se apaixona por uma mulher indígena e que tem com ela um filho mestiço que deve proteger. Seu filho é parte dessa raça que será dizimada sistematicamente. Devem desaparecer e, quando no final perde o garoto, ele deixa tudo e começa sua história de vingança, que logo se transforma em algo mais poético e existencial, algo onde a natureza exerce um papel determinante. Dos filmes que já fiz, este é o mais parecido com um documentário. Foi como penetrar no coração das trevas. Sabíamos que entrávamos em algo que era uma coisa e que, em algum momento, se transformaria em outra. É muito difícil precisar sobre o que é, o que quer contar ou o que significa. Mas é o mais próximo de um épico poético já visto no cinema recente. Não acredito que ainda sejam feitos muitos filmes assim. Há muito poucos cineastas com o talento ou a permissão necessários. Mas Alejandro é um deles. É algo excepcional que o tenham deixado propor o filme como uma obra de arte e lhe tenham dado um orçamento elevado como este.
Esta é também a visão mais realista dos nativos americanos? Era essa a mensagem que mais lhe interessou? Hollywood foi vergonhosamente racista com a população indígena dos Estados Unidos. Tratou-a como uma caricatura formada por entes etéreos e espirituais. Aqui são pessoas reais que tentam sobreviver como podem. São personagens de carne e osso, honoráveis em muitos sentidos, mas que também têm seus defeitos. E também há uma mensagem ambiental interessante, embora não seja o mais importante. Eu gostaria de fazer o grande filme do nosso tempo sobre o meio ambiente, mas é muito complicado encontrar algo que não pareça forçado ou afetado. É difícil encontrar um roteiro magistral e que, ao mesmo tempo, conscientize as pessoas sobre os danos ambientais através desta grande arte. Não faria um filme qualquer sobre o meio ambiente: continuo esperando o título definitivo sobre o tema. Da mesma maneira que fiz este filme por muito mais do que sua possível mensagem sobre a necessidade de preservar o entorno.
Ao atuar dessa maneira tão visceral, quase animal, resgatou o método intuitivo de interpretação de quando era um menino prodígio no cinema, na época de Gilbert Grape – Aprendiz de Sonhador? (Com esse filme, conseguiu em 1993 a primeira de suas quatro infrutíferas indicações ao Oscar). Ou foi desenvolvendo com o tempo um método mais racional? Aprendi muito ao longo dos anos. Quando você é muito jovem e consegue trabalhar com gente fantástica, isso mexe com você. Prepara-se para estar à altura. Eu tinha 15 anos quando trabalhei com Robert DeNiro [em O Despertar de um Homem, de 1993] e, antes de chegar ao set de filmagem, assisti a todos os filmes dele para pesquisar. Descobri como ele era específico, os momentos que extraía de detalhes muito pequenos. Isso mudou minha vida.
Depois de ‘Titanic’ [em 1997] decidi que precisava de um descanso. Foi muito intenso, não a filmagem, que eu adorei, mas o que aconteceu ao redor. Então me refugiei em minha outra grande paixão, que era o meio ambiente”
Também foi importante quando trabalhei com Daniel Day-Lewis em Gangues de Nova York [2002]. Para mim, é o melhor ator vivo. E como sou amante do cinema e gosto que sejam feitos os melhores filmes possíveis, coloquei-o em contato com Steven Spielberg para que interpretasse Lincoln como ninguém mais poderia [Lincoln, de 2012, foi o único filme de Spielberg que recebeu um Oscar de melhor ator]. E como qualquer artista, você também vai experimentando coisas novas. Algumas demandam mais preparação e outras são mais questão de saber reagir. Para ser sincero, eu me preparei pouco para este filme. Mas tinha que lidar com os elementos da natureza, que é um personagem indomável, e só podia fazer isso no terreno. Como a natureza também conta a história, devia reagir a esse entorno. Não dava para planejar muito. É uma forma muito primária de contar alguma coisa. Quase não há diálogo, e contar um relato interior com muito pouca articulação verbal é um desafio muito interessante. Nunca havia tido a oportunidade de fazer algo assim.
Cheira a Oscar outra vez. Vamos lá... [ri]. O bom de todo esse lance dos prêmios é que nunca depende de mim. Apenas tento fazer bons filmes. E me sinto muito sortudo por poder continuar fazendo-os. Com toda a mudança que houve no cinema... Veja Netflix, iTunes, HBO... Há muitos fatores que estão transformando a forma de fazer cinema. E a mudança vai continuar. Eu só quero continuar participando em obras de arte que tenham bom orçamento e que perdurem. Não sei quantas oportunidades teremos para continuar fazendo-as. Só um ou dois filmes de orçamento elevado podem ser considerados arte por ano, e sinto que nos últimos tempos fiz alguns deles. Não sei de quantos mais poderei participar. Sempre haverá um público concreto para cada tipo de cineasta: Alejandro [Iñárritu], Martin [Scorsese] e Quentin [Tarantino], por exemplo. Mas é cada vez mais difícil.
Também é cada vez mais difícil ser famoso no mundo de hoje, com todas as vias de acesso à intimidade das personalidades? Mudou muito. Mas eu também. Quando tinha 21 anos, em minha primeira experiência com a fama, tudo me parecia estranho. Era como estar em meu próprio filme. Agora estou mais acostumado, pois realmente faz parte da minha vida, embora deva reconhecer que você jamais se sente completamente cômodo em determinados ambientes. É muito estranho que sua vida se transforme num Show de Truman, com câmeras em todo canto. Não importa que não leve vida de famoso.Se há um evento, haverá 20 câmeras enfocando você, e isso passa ao domínio público quase imediatamente. Isso nunca havia acontecido.
Mas a fama chegou muito cedo. Lembra-se mais ou menos de como era ser uma pessoa normal? Era tudo muito mais simples que agora. Era estar isolado no meu bairro. É curioso, porque vivia em Los Angeles, mas a indústria do cinema não estava presente em nossa casa. Embora meu irmão fosse um ator ocasional, nunca me senti parte desse mundo. Se não fosse porque estava muito presente nas ambições dos demais, acho que nunca teria desejado. Às vezes tenho saudade, mas pude fazer muitas coisas como artista. É o preço a pagar.
Entre o assédio e o compromisso, sobra tempo para a diversão? Sim, claro. [Fala pela primeira vez com um olhar brincalhão]. Com certeza encontro maneiras de me divertir.
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