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Guardiola
Opinião
Texto em que o autor defende ideias e chega a conclusões basadas na sua interpretação dos fatos e dados ao seu dispor

A mudança de Guardiola

Para ir embora em silêncio é preciso ensaiar um pouco todas as noites

Juan Tallón
Guardiola durante treino em 3 de novembro.
Guardiola durante treino em 3 de novembro.C. STACHE (AFP)

Ninguém vai embora como Guardiola, para quem uma mudança representa mais um elemento do futebol, algo capaz de fazer evoluir o jogo. Em sua teoria de aprendizagem é bom começar do zero de tempos em tempos, como quem muda de nome, de país, de cônjuge, de bebida preferida, e mantém apenas sua fidelidade à bola, pela simples razão de que a ama com paixão. É emocionante experimentar se uma teoria de futebol de sucesso aguenta uma mudança de domicílio, novos vizinhos e jogadores, outro público, inclusive novos jornalistas na sala de imprensa. Imagino que um técnico ambicioso, que não precisa pensar em dinheiro, procure fazer tudo o que está a seu alcance para submeter suas ideias a novos desafios que a exponham, se for preciso, à falência total.

Para ir embora como Guardiola, em silêncio, quase com os sapatos na mão, é preciso ensaiar um pouco todas as noites, saindo para comprar cigarros ou para levar o lixo para fora. Ele aprendeu, como aquele poeta, a não grudar os móveis nas paredes, a não pregar muito fundo, a parafusar só o necessário e até a respeitar as manchas dos inquilinos anteriores. Assim é mais fácil sair de casa e ir para outro clube. A vida se torna mais simples se sua mala está feita desde o primeiro dia e se as estantes e gavetas permanecem vazios. Lenny Bruce contava que começou a ter problemas mais sérios com a lei exatamente nesse momento, e já não lhe importava deixar seus pertences jogados pelo apartamento. Em certa ocasião, durante uma batida, um policial reparou em um pó branco. “O que você me diz? Que isto em sua cômoda é aspirina? E então, para que é a seringa?”, perguntou. “É que parece mortal”, improvisou Bruce para despistar.

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No futebol, quando os dias se acomodam, há um momento confuso a partir do qual o técnico começa a ficar na mão de seus jogadores. O técnico orienta os treinos, grita do banco, escreve a escalação na lousa, determina as substituições, mas lentamente, às escuras, o poder já se transferiu para a equipe. Trata-se de um instante instável, perigosíssimo, no qual as coisas ainda parecem ir bem, enquanto se deterioram em silêncio. É preciso ter bom ouvido, e ser muito livre, como Guardiola, para ouvir essa música que não toca e ir embora da cidade correndo.

A ambição do técnico do Bayern pode ser observada no fato de simplesmente aspirar, quando planeja uma mudança, que em seu lugar fique o vazio deixado por uma ideia de futebol, à semelhança de uma almofada afundada por uma cabeça. Com um pouco de sorte, talvez o treinador seguinte pergunte: “Que diabos é este vazio aqui?” e quando lhe disserem que é uma ideia, talvez a retome, como fez o próprio Guardiola com a de Johan Cruyff. Trata-se de deixar um legado, em vez de escombros, e de ir em busca de novas aventuras, adentrando a densa névoa, como se atrás dela estivesse Ingrid Bergman, esperando para tomar o avião e fugir de Casablanca.

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