Alta iminente dos juros nos EUA coloca emergentes em risco
Dívida em dólares dos 12 maiores países desse bloco alcança 3,3 trilhões, um terço do total mundial
O último relatório do Banco de Compensações Internacionais (BIS, na sigla em inglês), publicado neste domingo – a menos de duas semanas da muito provável elevação das taxas de juros nos EUA –, apresenta um panorama instável para as economias emergentes. O organismo alerta para os riscos latentes para esses países, muito sensíveis a qualquer mudança no preço do dinheiro, num momento em que a maioria dos analistas prevê que os juros finalmente subirão na maior economia mundial, após passarem uma década próximos de zero. O calcanhar de Aquiles desses países em apuros é o seu elevado endividamento em dólares (3,3 trilhões, segundo a última cifra do Banco Europeu de Investimento), acumulado nos anos de maior debilidade da moeda norte-americana.
O conceito de “calma tensa” é o novo mantra do organismo coordenador dos bancos centrais. Os mercados financeiros voltaram ao normal após a tempestade de meados deste ano, que alimentou os piores presságios sobre os emergentes. As Bolsas chinesas, as mais golpeadas, recuperaram boa parte do terreno perdido, e a última sacudida, no começo de novembro, foi um pesadelo de uma noite só. Entretanto, a situação está muito distante da estabilidade de outrora, e qualquer movimento do Federal Reserve (banco central dos EUA), como o que se espera para o próximo dia 16, poderia desencadear uma nova tempestade.
“A recuperação dos mercados poderia sugerir que os emergentes estão em condições de confrontar o endurecimento da política monetária nos Estados Unidos”, observa o organismo em seu relatório trimestral. “No entanto, as condições menos favoráveis nos mercados financeiros, combinadas com a piora das perspectivas macroeconômicas e com a crescente sensibilidade às taxas de juros nos EUA, elevam o risco de contágio para esses países quando a alta começar.” Somem-se a isso as condições financeiras “menos favoráveis” que poderiam, na avaliação dos técnicos do BIS, “acentuar os riscos à estabilidade financeira”.
Como a maior parte das instituições de análise, o BIS se mostra atento não tanto à data da primeira elevação, e sim ao ritmo posterior dessa alta. Ou seja, o impacto para os emergentes seria maior se o aumento da taxa de juros nos EUA for brusco (algo praticamente descartado, dada a cautela demonstrada pelo Fed nos últimos meses) do que se for lento e gradual (o cenário mais provável, e que seria muito menos nocivo para o bloco de países emergentes conhecido pela sigla BRICS – Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul).
“Perante condições tão extraordinárias, não surpreende que os mercados estejam atentos a cada palavra dos bancos centrais”, resumiu na sexta-feira Claudio Borio, chefe do departamento de Economia e Assuntos Monetários do BIS, em uma entrevista coletiva por teleconferência.
“As vulnerabilidades financeiras dos emergentes ainda não se dissiparam”, acrescentou Borio. Nesse aspecto, o que mais preocupa o BIS é o elevado endividamento em dólares dos países em fase de industrialização. Os 3,3 trilhões de dívida em divisa norte-americana [12,3 trilhões de reais] dos 12 países representativos do bloco emergente representam mais de um terço do endividamento mundial em moeda norte-americana. A cifra inclui os passivos de Governos, empresas e cidadãos, mas não as dívidas contraídas por bancos junto a outras entidades financeiras. “Medido em moeda local, o valor desse endividamento cresceu com a valorização do dólar, pesando assim nas condições financeiras e debilitando os balanços”, explica Borio. “Além disso, persiste o grande volume de dívida doméstica acumulada depois da crise, especialmente dívida corporativa.”
Um estudo publicado em setembro pela agência de qualificação S&P sugeria que muitos Governos latino-americanos, com o Chile e o México à frente, haviam promovido nos últimos anos uma desdolarização da dívida pública para reduzir a probabilidade de um acidente financeiro. Ou seja, substituíram as emissões de títulos em moeda norte-americana por emissões em divisa local, para amortizar o risco cambial. No setor privado, segundo o BIS, essa tendência não se observa: o alto volume de dívida privada em dólares, ao invés de diminuir, continuou crescendo nos anos imediatamente posteriores à Grande Recessão.
“Fragilidade profunda” no setor bancário
Além das crescentes dificuldades no bloco emergente, algo inimaginável há apenas dois anos, o BIS salienta em seu relatório os problemas que afetam os bancos nas economias avançadas. “As instituições financeiras não estão utilizando a capacidade dos seus balanços como no passado”, alerta Borio. “De certo modo, isso pode refletir que tanto a liquidez de crédito quanto a liquidez de mercado foram gravemente subdimensionadas antes da crise, algo que agora se deve evitar a todo custo. Mas também é um sintoma de uma fragilidade mais profunda.”
Na entrevista coletiva, o economista do BIS chamou a atenção para as qualificações “surpreendentemente” frágeis dos bancos que não recebem ajudas oficiais, “que continuaram se deteriorando desde 2010 nas principais economias avançadas”. Na maioria dos países desenvolvidos, as ações dos bancos ainda são negociadas com um desconto sobre o seu valor contábil, apesar de a economia ter saído há anos da fase de baixa do ciclo. “Esse é um sintoma claro de desconfiança e ceticismo”, resume Borio. Na Europa, o problema mais urgente é, a seu ver, a ainda elevada taxa de inadimplência no crédito. “A reparação dos balanços deve ser empreendida com vigor”, conclui.
Euro ganha peso graças à sua desvalorização
A intensa desvalorização do euro frente ao dólar nos últimos meses não se reflete apenas, positivamente, sobre as exportações e o turismo na zona do euro. Esse movimento também permitiu que a moeda comum do Velho Continente recuperasse parte do terreno perdido como moeda de financiamento internacional, ou seja, a divisa escolhida por agentes econômicos de todo o mundo para contrair empréstimos. É o que constata o BIS em seu relatório trimestral, no qual antevê novas turbulências no bloco emergente à medida que os Estados Unidos elevarem seus juros, num processo que pode ter início já na quarta-feira da próxima semana.
A mão de Mario Draghi, artificie quase único da tímida recuperação econômica da zona euro, também causa efeitos colaterais. O euro, rejeitado durante anos como moeda por causa da sua força perante as demais divisas internacionais, volta pouco a pouco ao lugar que lhe corresponde, pelo peso econômico da Europa, nos mercados financeiros internacionais. Esse fenômeno, tecnicamente conhecido como "canal de assunção de risco", faz com que, quando uma moeda de referência se deprecia, como ocorreu com o euro nos últimos 20 meses, os devedores de outros países ou blocos econômicos tendem a se endividar mais nessa moeda, com a esperança de que o pagamento desses empréstimos seja menos oneroso quando calculado em uma moeda fraca. Aconteceu com o dólar nos anos imediatamente posteriores à Grande Recessão e volta a acontecer agora, em plena divergência entre a política monetária do BCE (expansiva) e a do Fed (que começa a ser restritiva).
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