A Bienal do Mercosul 2015 em Porto Alegre: falsas esperanças
A mostra de Porto Alegre deveria ser o evento artístico do ano na América Latina Mas três curadores se demitiram, e artistas protestam. Qual é a história por trás?
Com pompa e circunstância, foi anunciada em 30 de julho a lista dos artistas participantes da 10ª Bienal do Mercosul, que aconteceria em setembro de 2015. A promissora mostra, com o tema Mensagens de Uma Nova América, parecia feita sob medida para o gigantismo do Brasil: mais de 400 artistas e 700 obras de toda a América Latina, modernas e contemporâneas, do México ao Chile, passando pela esquecida América Central e a incerta Venezuela. O evento se propunha a traçar um mapa artístico que, à maneira de um conto de Borges, prometia ser (quase) tão grande como o território.
De fato, para ter uma ideia da magnitude da proposta, vale a pena comparar esse evento com a 31ª Bienal de São Paulo (2014), que incluiu 100 artistas e 250 trabalhos ou com a 56ª Bienal de Veneza (2015), atualmente aberta ao público, que inclui cerca de 80 nomes. A nova edição da Bienal do Mercosul multiplicava por três o número de obras de qualquer outra significativa e prometia gerar uma espécie de marco artístico que repensasse criticamente a cena visual latino-americana e a mobilizasse às margens do rio Guaíba. As diversas curadorias procuravam “reescrever a história da arte na América Latina”, e para isso analisariam todos os processos possíveis: a urbanização do continente, as modernidades silenciadas pela historiografia e um longo etc.
Infelizmente, a 10ª Bienal do Mercosul foi o canto do cisne antes de uma crise política longamente anunciada. Desde antes da divulgação da lista de artistas participantes, os cortes orçamentários feitos pelo Governo brasileiro já eram o pão de cada dia, e estava evidente o processo trepidante de revalorização do dólar norte-americano frente ao real brasileiro. Entretanto, como de costume, o mundinho da arte continuava em festa, como na época das vacas gordas. A estrutura organizacional da Bienal estava composta por seis integrantes: um curador-chefe, um curador-adjunto e quatro curadores-assistentes, que dividiram entre si a seleção das obras por países, embora as decisões fossem tomadas unicamente pelos dois primeiros.
Um dos curadores-assistentes, o argentino Fernando Davis, que renunciou recentemente ao seu cargo, afirma: "Antes de julho, quando foi anunciada a lista de artistas, a crise era evidente e sabíamos que a Bienal teria um corte orçamentário expressivo, o que implicaria algum tipo de ajuste. Mas o problema era que o curador-chefe, Gaudêncio Fidelis, não queria mudar a metodologia: o critério era não cortar obras nem artistas. Antes da entrevista coletiva, nós, os curadores-assistentes, solicitamos que não fossem divulgados os nomes dos artistas selecionados até que estivesse definido o financiamento de transportes e seguros das obras. Mas tanto o curador-chefe como o curador-adjunto, Márcio Tavares, disseram que deveria-se anunciar os artistas porque, caso contrário, a direção da Bienal cancelaria o evento por causa da crise”.
Apesar do otimismo, em 21 de setembro a Bienal anunciou que só seriam incluídas obras de países que contassem com patrocínios privados ou financiamento dos Governos de origem
Apesar do otimismo, em 21 de setembro, a Bienal anunciou que só seriam incluídos trabalhos de países que contassem com patrocínios privados ou financiamento dos Governos de origem, um fato que restringia as possibilidades curatoriais de gerar coerentemente mensagens de uma nova América, o propósito principal. Naquele momento, só havia patrocínios para México, Paraguai, Peru, Equador e Bolívia. Depois, alguns deles começaram a cair, como no caso peruano. Outros países foram sumariamente cortados (Colômbia, Venezuela, etc.), apesar de algumas obras terem conseguido transporte na última hora.
A situação começou a se tornar preocupante à medida que a data da abertura se aproximava: os artistas escreveram para a organização preocupados, porque nunca haviam sido alertados sobre o cancelamento repentino de suas participações. Nem mesmo os curadores estrangeiros que participariam do evento haviam sido informados da decisão. Alguns tinham comprado passagens aéreas, feito reservas em hotéis, emprestado dinheiro dos departamentos de cultura de seus países e até mesmo aperfeiçoado e embalado suas obras para enviá-las à Bienal dos 400 artistas. A abertura acabou sendo adiada por duas vezes: de setembro para 8 de outubro e, em seguida, para o dia 23.
Davis apresentou sua renúncia em 6 de outubro, e dois outros curadores, Raphael Fonseca (Brasil) e Ramón Castillo (Chile), seguiram o exemplo.
Infelizmente, a 10ª Bienal do Mercosul foi o canto do cisne antes de uma crise política longamente anunciada
A Bienal decidiu privilegiar as obras que já estavam no Brasil (sejam elas de artistas locais ou estrangeiros, como o argentino Lucio Fontana). Isso elimina grande parte das taxas alfandegárias. Também foi dada prioridade às instalações produzidas diretamente por artistas de Porto Alegre, e foi privilegiada a projeção de vídeos, formato que permite ser enviado por e-mail. Embora algumas obras baseadas em objetos já tivessem sido enviadas (procedentes de países que obtiveram patrocínios), o mal-estar generalizado dos artistas por causa do silêncio da direção foi se espalhando como fogo em pólvora, aquecendo desde as estepes patagônicas até as montanhas andinas. Recentemente, os artistas rejeitados se uniram para criar grupos no Facebook, abaixo-assinados on-line, cartas coletivas, artigos em meios de comunicação alternativos e até mesmo memes. Em resposta, a direção do evento afirmou que procurou privilegiar a “qualidade artística” e culpou “a crise”.
Alguns artistas receberam cartas oficiais dizendo que haviam sido recusados, enquanto outros foram convidados a levar suas obras na mala, uma opção complicada para, por exemplo, o colombiano Leonardo Ramos, que trabalha com crânios humanos e material vegetal, insumos proibidos pelas autoridades aduaneiras.
A Bienal não viu na crise uma oportunidade para unir um continente dividido. Não tentou gerar novas formas de trabalho colaborativo em meio às dificuldades regionais; pelo contrário, deu as costas aos curadores convidados e aos artistas anunciados publicamente, alguns com menos de 40 anos e com obras promissoras. Perante a crise, em vez de um diálogo aberto com base na redefinição do projeto da Bienal, buscou-se preservar intacta uma institucionalidade rígida. A redefinição crítica latino-americanista deu lugar à endogamia nacionalista, útil para os interesses do mercado de arte brasileiro. Alguns artistas inconformados prometeram viajar a Porto Alegre para boicotar a Bienal, e outros pretendem realizar eventos alternativos. Vamos ver o que acontece.
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