_
_
_
_

Infâncias traídas por Deus

Festival de Veneza apresenta ‘Spotlight’, que recria investigação sobre padres pedófilos

Tommaso Koch
Stanley Tucci, Thomas McCarthy e Mark Ruffalo, da esquerda para a direita, posam para os fotógrafos em Veneza na tarde desta quinta-feira.
Stanley Tucci, Thomas McCarthy e Mark Ruffalo, da esquerda para a direita, posam para os fotógrafos em Veneza na tarde desta quinta-feira.Joel Ryan (ap)

Começou com um padre e uma leve suspeita. E acabou em um escândalo de abuso de menores no seio da Igreja Católica que mostrou o envolvimento de 249 eclesiásticos apenas na arquidiocese de Boston. Uma vez aberta em 2002 a caixa de Pandora, as denúncias se multiplicaram nos EUA e no mundo, tanto que hoje os casos de padres pedófilos comprovados já são milhares. Tudo desde que quatro repórteres da Spotlight, uma equipe de investigação de The Boston Globe, se debruçaram durante meses no que melhor faziam: o jornalismo.

Mais informações
Veneza traz filmes latinos em uma programação 'atrevida'
Bispos pedem perdão “às possíveis vítimas” de pedofilia
A cruzada do Papa contra a pedofilia avança na América

Ou seja, rastrear arquivos, entrevistar vítimas, checar depoimentos e lutar contra o ostracismo tanto da Igreja como de quem queria olhar para o outro lado. Finalmente, eles se depararam com documentos que provavam a traição mais cruel dos homens de Deus a seus pequenos fiéis. Sua investigação ganhou o Pulitzer e foi levada ao cinema no filme Spotlight, apresentado na manhã desta quinta-feira fora da competição oficial no festival de Veneza. Entre grandes aplausos, tanto para o filme como para o trabalho dos jornalistas.

“Há dois lugares onde eu tinha uma expectativa especial para a estreia do filme: a Irlanda e a Itália”, conta o diretor, Thomas McCarthy, em um encontro com vários jornalistas internacionais. O primeiro foi, talvez, o país onde o escândalo dos padres pedófilos atingiu seu nível mais dramático. E o segundo, claro está, é a sede do Vaticano. De onde, por certo, só chega o silêncio. “Não acredito que vá haver resposta alguma”, diz McCarthy, que elogia as tentativas de renovação do papa Francisco, mas se mostra pessimista sobre suas consequências reais. Afinal das contas, no coração de Roma ainda vive o cardeal Law, representante máximo da Igreja em Boston durante a investigação, e que também demonstrou seu conhecimento do que acontecia na casa do Senhor. Uma transferência foi o único preço pago pelo líder do rebanho por silenciar no caso das centenas de ovelhas que tiveram a infância destroçada.

“Quando começaram a investigar sabiam que se tratava de algo importante, mas não acho que imaginavam o alcance que teria”, afirma McCarthy sobre os repórteres originais. O cineasta e o elenco do filme (Mark Ruffalo, Rachel McAdams, Michael Keaton, entre outros) passaram meses se reunindo de vez em quando com os jornalistas da Spotlight e com qualquer pessoa que tivesse algo a ver com a história: vítimas, advogados, padres, juízes... “Buscamos todas as perspectivas possíveis”, acrescenta o diretor.

Há cartas de pessoas dizendo: ‘Queria continuar sendo católica, mas vocês violaram sete de meus filhos. Ajudem-me!'” Thomas McCarthy, diretor

Como uma série de bonecas russas ao inverso, o filme seguiu um processo idêntico à investigação: a história não parava de crescer. Tanto que levou anos apenas para se redigir o roteiro e o projeto esteve “morto” três vezes, diante das dificuldades para encontrar alguém disposto a financiar uma história que iluminasse o lado mais obscuro da Igreja. “Há cartas de pessoas dizendo: ‘Gostaria de continuar sendo católica, mas vocês violaram sete de meus filhos. Ajudem-me!, relata McCarthy. Ou, como explica uma das vítimas no filme sobre por que não se revelou: “Como se pode dizer não a Deus?”.

“As exigências eram altíssimas. Você interpreta gente real, que está ali, diante de você. Você conta uma história com muitas vítimas, e ainda vai contra uma das instituições mais importantes do mundo”, explica Ruffalo, que interpreta Michael Rezendes, um dos quatro repórteres. O ator estudou e reproduziu com perfeição os movimentos e a curiosidade incansável do jornalista. “Às vezes atuar é como o jornalismo, como uma reportagem: você tem de saber tudo do personagem, como pensa, o que comeria, que música escutaria. No início da minha carreira eu quase passava mais tempo na biblioteca do que no cenário”, acrescenta Ruffalo. No fundo, McCarthy considera que Spotlight é também um monumento ao jornalismo “sólido e profissional” e à reportagem local, nos tempos da Internet, da globalização e da rapidez passando por cima da qualidade. Embora, na realidade, o diretor use outro termo: “Testamento”.

Outra infância perdida

Cary Fukunaga e o ator Abraham Attah, diretor e intérprete de 'Beasts of No Nation', posam para os fotógrafos em Veneza.
Cary Fukunaga e o ator Abraham Attah, diretor e intérprete de 'Beasts of No Nation', posam para os fotógrafos em Veneza.Joel Ryan (ap)

É difícil imaginar uma infância mais trágica do que a de uma vítima de pedofilia. No entanto, Beasts of No Nation, o filme de Cary Fukunaga (diretor da primeira temporada de True Detective) que inaugurou na noite de quarta-feira a competição oficial do festival, mostrou outra das horríveis maneiras de crescer no mundo. O filme, produzido pela Netflix e protagonizado por Idris Elba, conta a odisseia de Agu, um menino africano condenado a perder a inocência em meio a uma guerra: sua família é assassinada e ele é recrutado por um grupo de guerrilheiros que avança massacrando qualquer um que encontre pelo caminho.

Fukunaga explicou as enormes dificuldades da filmagem, em plena selva africana, e analisou a coincidência de seu filme com Spotlight: “Creio que os filmes têm o poder de pôr em andamento mudanças e fazer deste mundo um lugar melhor”. A seu lado, o pequeno Abraham Attah, protagonista de Beasts of No Nation, sorria e contava em poucas palavras como foi sua contratação: “Estava jogando futebol no colégio, chegou um cara e me perguntou se eu queria estar em um filme”. Assim simples. Menos mal.

Tu suscripción se está usando en otro dispositivo

¿Quieres añadir otro usuario a tu suscripción?

Si continúas leyendo en este dispositivo, no se podrá leer en el otro.

¿Por qué estás viendo esto?

Flecha

Tu suscripción se está usando en otro dispositivo y solo puedes acceder a EL PAÍS desde un dispositivo a la vez.

Si quieres compartir tu cuenta, cambia tu suscripción a la modalidad Premium, así podrás añadir otro usuario. Cada uno accederá con su propia cuenta de email, lo que os permitirá personalizar vuestra experiencia en EL PAÍS.

En el caso de no saber quién está usando tu cuenta, te recomendamos cambiar tu contraseña aquí.

Si decides continuar compartiendo tu cuenta, este mensaje se mostrará en tu dispositivo y en el de la otra persona que está usando tu cuenta de forma indefinida, afectando a tu experiencia de lectura. Puedes consultar aquí los términos y condiciones de la suscripción digital.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_