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Lava Jato faz justiça brasileira ir além do ‘ladrão de galinha’

Direito começa a punir crimes de colarinho branco e alimenta guerra midiática de juristas e advogados

Rodolfo Borges
Deltan Dallagnol, procurador da força-tarefa da Lava Jato.
Deltan Dallagnol, procurador da força-tarefa da Lava Jato.Vladimir Platonow

Nos 20 anos que se seguiram à promulgação da Constituição de 1988, o Supremo Tribunal Federal (STF) não condenou nenhuma autoridade no Brasil. E não faltaram oportunidades, já que foram protocoladas no STF 130 ações nesse período — as únicas seis que foram de fato a julgamento resultaram em absolvição, segundo dados da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB). O primeiro condenado na Corte Suprema viria apenas no fim de 2010, quando o então deputado federal Natan Donadon pegou 13 anos de cadeia por formação de quadrilha e peculato. O desfecho do caso Donadon prenunciava as 25 condenações por crimes de colarinho branco no julgamento do mensalão, dois anos depois, que estabeleceram bases para a execução de uma operação como a Lava Jato, capaz de encarcerar dezenas de empresários e acossar 50 autoridades da República.

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A evidente mudança na forma da condução das investigações e do julgamento de crimes de colarinho branco no Brasil causa incômodo no mundo jurídico. Os maiores advogados criminalistas do país, praticamente todos eles envolvidos de alguma forma na defesa de políticos, empreiteiros e empresas investigados pela Operação Lava Jato, se revezam diariamente na crítica, via notas à imprensa, artigos e entrevistas, aos procedimentos da operação comandada pelo juiz Sergio Moro, em Curitiba.

Ex-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e defensor do ex-ministro Antonio Palocci no caso, José Roberto Batochio criticou recentemente em artigo "certos magistrados justiceiros" e disse que "assistimos atônitos a um festival de prisões arbitrárias". Defensor de um empreiteiro na Lava Jato e advogado do ex-ministro José Dirceu no mensalão, José Luiz de Oliveira Lima escreveu para lamentar violações ao direito de defesa e dizer que advogados e clientes têm sido "criminalizados" por "apontar falhas e incoerências dos investigadores". Já Antônio Carlos de Almeida Castro, conhecido como Kakay e advogado de três senadores no caso, chegou a promover um seminário para apontar os riscos da delação premiada, base das investigações da Lava Jato.

Antigamente, o advogado ganhava a partida 'no apito'. Agora, o juiz já não aceita mais a pressão", diz o procurador de Justiça do Rio Grande do Sul aposentado  Lenio Streck

As reclamações fazem parte da estratégia de defesa e alimentam a batalha midiática entre criminalistas e procuradores do Ministério Público Federal, mas não lhes faltam fundamento: os procedimentos mudaram, e isso não ocorre de forma harmoniosa. Os polos do julgamento de crimes de colarinho branco realmente parecem ter se invertido no Brasil. "Antigamente, o advogado ganhava a partida no apito. Agora, o juiz já não aceita mais a pressão", resume no jargão futebolístico o procurador de Justiça do Rio Grande do Sul aposentado Lenio Streck. Professor e advogado, Streck também tem escrito para criticar a forma de condução da Lava Jato, mas admite que o direito brasileiro não se preparou para as mudanças dos últimos anos, sendo surpreendido e atropelado pelas novidades.

O professor destaca que o Código de Processo Penal brasileiro data da década de 1940, e desde então é "inquisitivo, dando todos os poderes ao juiz". De lá para cá, mudanças como o aumento da autonomia da Polícia Federal, a regulamentação da delação premiada e o aprendizado adquirido pelos investigadores em operações que acabaram anuladas pela Justiça, como Satiagraha e Castelo de Areia, permitiram estender a ação desse juiz magnânimo para além do ladrão de galinha.

Essas mudanças ainda vieram acompanhadas pelo surgimento, destaca Streck — ressaltando que isso não é uma apreciação depreciativa — de uma nova geração de investigadores oriundos "da pequena-burguesia que chega ao poder, com forte sentimento moralizante e conservador". São o que o professor da FGV Direito Rio Joaquim Falcão classifica como juízes, procuradores e delegados que "não têm passado a proteger ou a temer". Em artigo publicado na Folha de S.Paulo, Falcão destaca que esses homens da lei são mais jovens, fizeram concurso mais cedo, "vivem na liberdade de imprensa, na decadência dos partidos e na indignante apropriação privada dos bens públicos". Eles "dão mais prioridade aos fatos que às doutrinas", são mais pragmáticos e menos bacharelistas, diz o professor.

A combinação entre esses agentes da lei voluntariosos e uma doutrina jurídica defasada levaram a uma situação de imprevisibilidade, alerta Lenio Steck. "O excesso de ativismo judicial prejudica a segurança jurídica. Tudo acaba indo parar no Judiciário. Desde a demarcação de terras indígenas até a regulamentação de uniões homoafetivas, passando, agora, pela descriminalização da maconha. Ora, essas tarefas são do Legislativo. Com isso, o judiciário fica forte demais. E pratica decisionismos", avalia o procurador aposentado, que acrescenta: "o mensalão foi um embrião. A Lava Jato escancara esse novo imaginário. Para o bem e para o mal".

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