1965: o ano que mudou o pop
O disco ‘Rubber Soul’, dos Beatles, fez do LP o principal suporte O folk-rock difundia mensagens e James Brown inventava o funk
Saiu em fevereiro um livro ambicioso e provocador, intitulado 1965: The Most Revolutionary Year in Music (“1965, o ano mais revolucionário da música”). Seu autor, Andrew Grant Jackson, californiano especialista em Beatles, argumenta que 1965 foi o ano da maioridade do pop, quando a criatividade artística estava magicamente sincronizada com as mudanças sociais e políticas que viriam a definir o resto daquela década.
Ok, 1965 foi um ano de vacas gordas. Os Rolling Stones emplacaram seu primeiro clássico inoxidável, uma canção insolente e sexual chamada (I Can’t Get No) Satisfaction. Estimulado pelo nascente folk-rock, Bob Dylan voltou aos instrumentos elétricos da sua juventude e gravou Like a Rolling Stone, que dinamitava as convenções sobre a linguagem, o tom e a duração de um single de música pop. E o The Who lançou um hino desafiador, My Generation.
De repente, o pop era a nova fronteira, onde fortunas podiam ser ganhas. Andy Warhol se transformava no produtor oficial de um sisudo grupo nova-iorquino, o The Velvet Underground. Andy não tinha a menor ideia de como produzir um disco, mas Andrew Loog-Oldham também tinha essa deficiência, e isso não o impedira de catapultar os Stones para a fama. Aos olhos da sociedade bem-pensante, era escandaloso que aqueles fedelhos extravagantes ganhassem tanto dinheiro —vide The First Tycoon of Teen, o perfil de Phil Spector escrito por Tom Wolfe.
Discretamente, em 1965 se manifestam rupturas que viriam a transformar o perfil sonoro. A música indiana surgia em faixas dos Yardbirds (Heart Full of Soul) e The Kinks (See My Friend); o sitar e outros instrumentos do subcontinente apareciam também na trilha sonora instrumental de Help!, segundo filme dos Beatles. Em pleno esplendor de selos como Motown e Stax, James Brown corria por conta própria e inventava o funk com Papa’s Got a Brand New Bag, transformando todos os seus instrumentistas em máquinas de ritmo. B.B. King desdobrava sua magia comunicativa em Live at the Regal, que seria seu cartão de visitas para o público branco. No outro extremo, o jazzista John Coltrane introduzia uma espiritualidade hipnótica com A Love Supreme.
‘Satisfaction’, ‘Like a Rolling Stone’ e ‘My Generation’ viraram hinos de uma época
É espantoso que, viajando constantemente para suas turnês, os principais artistas tenham tido tempo e energia para gravar dois LPs por ano. Foi assim em 1965 com os Beatles, Otis Redding, Stones, Donovan, Byrds, Kinks, Johnny Cash e Temptations; as Supremes e os Beach Boys chegaram a lançar três discos. Claro que semelhante produtividade musical tinha os dias contados. Só James Brown não deu bola: em 1966, lançaria nada menos do que meia dúzia de álbuns!
Uma saudável competição sonora
Era the British invasion. A imprensa norte-americana caracterizava a chegada dos Beatles em termos militares, como se a guerra de 1812 continuasse. Entretanto, não houve animosidade entre os músicos dos dois lados do Atlântico.
Bob Dylan iniciou os Beatles na maconha. Mais decisivo, porém, foi o exemplo dylaniano de exploração do espaço interior e sofisticação literária. Bob, por sua vez, observava o impulso que um arranjo eletrificado dava ao cancioneiro ancestral, como em The House of the Rising Sun na versão dos The Animals.
Os Reis do Iê, Iê, Iê (A Hard Day's Night), primeiro filme dos Beatles, converteu muitos folkies norte-americanos ao rock. David Crosby e Jim McGuinn, do The Byrds, devolveram o favor em uma festa em Los Angeles, onde se consumiu LSD e se falou do virtuoso Ravi Shankar.
Antes da Internet, as mensagens iam e vinham nos discos. Depois de devorar Rubber Soul, Brian Wilson decidiu que os Beach Boys deveriam crescer e concebeu seu deslumbrante Pet Sounds. Lennon e McCartney foram ao lançamento do álbum em Londres; depois de ouvirem-no, compuseram Here, There and Everywhere como resposta aos californianos.
Essa atividade febril era resultado da necessidade de aproveitar ao máximo os recursos dos estúdios, que hoje pareceriam incrivelmente primitivos, com gravações em dois, três ou quatro canais. A equalização era feita com a extraordinária eficiência dos técnicos e, se fosse necessário, com músicos de aluguel. Nada de experimentar: no estúdio, entrava-se para matar. O álbum Otis Blue foi gravado em 24 horas, um prodígio de sintonia e suor —Otis Redding nunca tinha escutado os Rolling Stones, mas gravou Satisfaction com um ardor que nem Mick Jagger e Keith Richards poderiam imaginar.
Ao mesmo tempo, os Beatles se esqueciam do taxímetro do estúdio e instauravam um novo paradigma. Rubber Soul oferecia 12 canções originais, abundantes em audácias, que serviam para proclamar: “Agora somos assim, e aqui estamos”. Exibiam flexibilidade —a tal alma de borracha— e retratavam indiretamente a troca de guarda no país de Elizabeth II. Depois de 12 anos sob Governo conservador, ascendia uma juventude educada e consumista, com dinheiro novo nos bolsos, ciosa das suas liberdades sexuais e curiosa quanto às possibilidades oferecidas pelas drogas.
Os Beatles e seus seguidores (ou seja, todo o resto do universo pop, dos espanhóis Los Brincos aos uruguaios Los Shakers) tinham arrogância suficiente para exigir que sua expressão se desse por intermédio dos LPs. Podiam gravar compactos de duas canções para não perder o contato com os fãs mais juvenis, mas o jogo para valer era jogado nos discos maiores. Ray Davies afirmava: “Eu giro a 33 rpm”. Pete Townshend especulava compondo óperas-rock, obras que narrariam uma história complexa e que exigiam, que barbaridade!, LPs duplos.
Nos Estados Unidos, o dilema entre o LP e o single não era tão dramático: o padrão de vida permitia que os adolescentes comprassem rotineiramente discos longos (aliás, a Capitol, editora dos Beatles, cortava as edições britânicas para roubar referências exclusivas para o mercado americano). Além disso, muitos músicos de ponta, dos Byrds ao Lovin’ Spoonful, procediam do mundinho folk, que funcionava à base de LPs, seguindo o modelo conceitual da Folkways Records.
A coroação do LP era uma má notícia para produtores pop como Phil Spector. Para ele, um álbum equivalia a “dois sucessos mais dez lixos de recheio”. Esse cinismo era compartilhado secretamente na indústria fonográfica, mas revelava uma perigosa incapacidade de adaptação. A técnica do Wall of Sound (muro sonoro) foi explorada por antigos artistas seus, como os Righteous Brothers, e por Johnny Franz e Ivor Raymonde, que criaram em Londres dramas esmagadores para os Walker Brothers. Produtores e compositores inteligentes encontraram outros filões. Foi o caso de Tom Wilson, cúmplice de Dylan, que acrescentou fundo elétrico a The Sound of Silence sem avisar seus autores, Simon & Garfunkel. Ou Serge Gainsbourg, cantor e compositor fracassado que descobriu o mercado pop com suas canções para France Gall.
Entretanto, será que cabe mesmo afirmar que 1965 foi o ano mais revolucionário da música popular, como proclama Andrew Grant Jackson? Isso é perfeitamente defensável, inclusive razoável. Mas espere os próximos anos, até ver hipérboles semelhantes serem atribuídas a 1966, 1967, 1968…
Tu suscripción se está usando en otro dispositivo
¿Quieres añadir otro usuario a tu suscripción?
Si continúas leyendo en este dispositivo, no se podrá leer en el otro.
FlechaTu suscripción se está usando en otro dispositivo y solo puedes acceder a EL PAÍS desde un dispositivo a la vez.
Si quieres compartir tu cuenta, cambia tu suscripción a la modalidad Premium, así podrás añadir otro usuario. Cada uno accederá con su propia cuenta de email, lo que os permitirá personalizar vuestra experiencia en EL PAÍS.
En el caso de no saber quién está usando tu cuenta, te recomendamos cambiar tu contraseña aquí.
Si decides continuar compartiendo tu cuenta, este mensaje se mostrará en tu dispositivo y en el de la otra persona que está usando tu cuenta de forma indefinida, afectando a tu experiencia de lectura. Puedes consultar aquí los términos y condiciones de la suscripción digital.