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A QUARTA PÁGINA
Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

As corrupções

Nos encontramos diante de uma autêntica ‘tangentopoli’ à espanhola, na qual a corrupção é sistêmica, e só poderá ser combatida com medidas que reformem profundamente o sistema

Juan Luis Cebrián

“Essa legislação eleitoral criou uma classe política tão incompetente como submissa... É difícil que possa planejar, e menos ainda realizar, uma política criativa e rompedora para saírem fortalecidos da crise”. Ignacio Sotelo (*)

Apesar dos muitos e famosos os casos de abuso, fraude, roubo, lavagem de dinheiro e conspiração para delinquir que, entre outros lindos atos, parecem ter cometido centenas de políticos, empresários e representantes sindicais na Espanha, a pior de todas as corrupções que enfrentamos me parece ainda a linguagem a qual nos acostumaram nossos líderes quando tentam explicar e combater tantos desmandos. A quase totalidade da classe política, na hora de pedir perdão e prometer reparações, concorda em assegurar que os delinquentes são minoria entre os membros de sua tribo (era só o que faltava, que não fossem!) e em propor códigos e leis que persigam essas más condutas individuais. Mas nenhum, ou pouquíssimos, é capaz de reconhecer que estamos diante de uma autêntica ‘tangentopoli’ à espanhola, na qual a corrupção é sistêmica, e só poderá ser combatida com medidas que reformem profundamente o sistema. O funcionamento atual de nosso regime político favorece esses comportamentos puníveis e se não reagirmos a tempo (ainda que em alguns momentos já parece ser tarde para fazê-lo), ameaça implodir, acabando com o que até agora tem sido o período de maior liberdade, estabilidade política e crescimento econômico da história da Espanha.

Este é um país de cidadãos honrados, ao contrário do batido tópico do malandro espanhol

O arrepio não dissimulado que sentem os círculos dirigentes e amplos setores das classes acomodadas diante da notícia de que um partido como o Podemos lidera a lista dos eventualmente mais votados nas eleições impede muitos de reconhecer que tal partido, que se parece em grande parte com uma expressão populista das doenças infantis do socialismo, não é a principal ameaça para nossa democracia. Os perigos reais que ela enfrenta vêm justamente do que os recém chegados chamam de casta e os teóricos que os avalizam gostam de definir como elites extrativistas: a estrutura política, social, econômica e midiática que vem governando esse país nas últimas décadas.

O diagnóstico do Podemos me parece nesse sentido bastante acertado, ainda que as soluções que oferece são tão genéricas como oníricas. E apesar de seu disfarce de radicalismo do bem, não conseguem dissimular seu menosprezo pelos princípios liberais sobre os quais repousa a democracia representativa. Por outro lado, é no mínimo notável que sejam incensados com entusiasmo por dois grupos de televisão que se diferem, como nenhum outro, por seu pertencimento a essa mesma casta que Pablo Iglesias e os seus se preparam para dinamitar. Correm rumores, provavelmente fundados, que a deferência permanente das redes de televisão de Berlusconi e Lara com os líderes da nova formação, os quais exaltaram oferecendo-lhes púlpito permanente, seria consequência da análise dos conselheiros eleitorais do PP, pois presumiram que assim ajudariam a fragmentar a esquerda, facilitando a renovação da maioria do partido no Governo, por pior que seja. Verdade ou não, faz tempo que as atitudes do poder, seus movimentos táticos e estratégicos, respondem fundamentalmente aos seus interesses e ambições eleitorais a curto prazo, e não às preocupações da população. O que chama a atenção é que mediante comportamento tão singular e provinciano, nada conseguirá a não ser sua própria destruição. A análise que o PP se empenha em fazer das notícias sobre corrupção e crime organizado que assolam nossa vida política como desgraçadas, mas excepcionais amostras da debilidade ou maldade humanas, impede seus dirigentes de adotarem as decisões que permitam lutar contra a corrupção do próprio sistema e garantir a sobrevivência da Constituição de 1978. Com ela, nós espanhóis desenvolvemos um projeto de convivência sem precedentes em nossa história. Quem acredita que agora ele não está ameaçado, ou é muito cego ou muito hipócrita.

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Como a corrupção é sistêmica, só será possível combatê-la com algum sucesso adotando medidas estruturais. Por mais que se promulguem diversas leis de transparência, vários acordos que busquem, e até encontrem, os principais partidos do arco parlamentar, sem uma nova lei eleitoral, que elimine as listas fechadas e bloqueadas e as províncias como distritos; sem uma mudança na lei de partidos, que garanta sua democracia interna e seu financiamento sem remuneração extra, propinas ou porcentagens escusas; sem uma reforma da Administração que elimine milhares de municípios e cargos políticos, acabe com a infraestrutura inútil e custosa como as assembleias legislativas e incorpore critérios de produtividade e serviço público; sem uma luta decidida contra a fraude fiscal em um país no qual os dois recentes secretários de estado da Fazenda aparecem como fraudadores singulares no caso dos cartões negros; sem um reforço da justiça que garanta sua independência e equidade, com procedimentos rápidos e gratuitos, e a não vulnerabilidade da presunção de inocência; sem tudo isso, ao que é preciso incorporar nas escolas uma educação para a cidadania que instrua as novas gerações dos valores cívicos da democracia, e na liberdade de pensamento frente a todo fundamentalismo, a corrupção do sistema prevalecerá contra qualquer boa intenção de nossos governantes.

Quase nenhuma das instituições básicas de nossa Constituição funciona hoje normalmente, e não somente no que se refere à atual desordem territorial da Espanha das autonomias. Continuamos esperando a promulgação de um estatuto da Coroa que regulamente por lei os direitos, deveres e responsabilidades da família real. O Tribunal Constitucional, com sua credibilidade já muito castigada após a famosa sentença sobre o Estatuto catalão, é presidido por um militante do partido do Governo que não teve a decência intelectual de se demitir quando isso aconteceu. O Tribunal de Contas é um poço de nepotismo e pistolões que até o momento, que se sabia, não foi capaz de descobrir as malversações, subornos e desvios improcedentes de dinheiro público que nos envergonham. O Parlamento é a expressão viva da distância dos partidos para seus eleitores, com um Senado inútil e um Congresso dedicado a parlamentar sobre tudo menos sobre o que mais se comenta nas ruas: a corrupção. Enquanto isso, líderes históricos do cenário político, empresarial e sindical vão parar na cadeia por roubar e fraudar. E os veículos de comunicação, enfrentando uma verdadeira crise existencial, subscrevem a fanfarronice nacional em meio ao barulho causado pelas redes sociais.

É preciso uma reivindicação da democracia representativa e do bipartidarismo

Catastrofismo? De maneira nenhuma. Que a corrupção seja sistêmica não significa que esteja generalizada em nossa sociedade, mas que produz um comportamento anormal e com certa frequência criminoso no uso e manejo dos fundos públicos. Esse é um país de pessoas honestas com uma cultura cívica na qual a decência se sobressai ao batido tópico do espanhol malandro. Por isso tem solução, mas somente se existir alguém disposto a realizá-la. No âmbito econômico, estão aí as propostas do Conselho de Competitividade, que são até agora a única alternativa concreta ao programa de Governo. Se os maiores empresários oferecem um plano para que o desemprego caia vertiginosamente em nosso país, merece pelo menos um debate grande e sem brincadeiras. Mas ninguém parece querer fazê-lo. No âmbito político, uma autêntica regeneração do sistema, que nada tem a ver com as promessas vazias nem os excessos histéricos que contemplamos diariamente, ocasionará inevitavelmente o desaparecimento de uma grande porcentagem dos integrantes da velha e tão traída casta.

De qualquer forma, estamos prestes a ter uma renovação geracional e de quadros como não ocorre desde o início da Transição. Sua irrupção acontece, entretanto, sob bandeiras que apelam mais para a identidade perdida e a frustração das pessoas que a um projeto reconhecível de convivência. Nesse momento, a Espanha precisa de uma reivindicação da democracia representativa e do bipartidarismo mitigado como melhores métodos para garantir a alternância no poder e a coesão de um país ameaçada pela dispersão territorial, o populismo (incluindo o nacionalismo irredutível) e nas conversas fantasiosas dos falastrões da televisão. A classe política do franquismo cometeu o haraquiri, o que permitiu construir a democracia em um ambiente menos violento do que o esperado após a morte do ditador, e propiciou a reconciliação entre os espanhóis em troca de um projeto de futuro em liberdade. Me pergunto se a classe política da democracia, e muito particularmente a direita no poder, terão a mesma lucidez para se refundar na defesa da própria democracia. Se o fizerem, o populismo continuará existindo como expressão da ira e da decepção de muitas pessoas, e talvez também como método barato para captar audiência para a televisão ‘marrom’. Mas não submeterá nosso país à utopia, o desconcerto e a presunçosa verborragia da qual agora se utiliza.

Juan Luis Cebrián é presidente do EL PAÍS e membro da Real Academia Espanhola.

(*) Espanha na saída da crise. Editora Icaria / Antrazyt. Página 138.

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