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O vírus que se fortaleceu ao chegar à cidade

O rio Ebola dá nome ao agente infeccioso que surgiu em 1976. Doença já matou mais de 4.200 pessoas

Javier Sampedro
Membros da Cruz Vermelha transportam o cadáver de uma vítima de ebola, em 1995, perto de Kikwit, no Zaire.
Membros da Cruz Vermelha transportam o cadáver de uma vítima de ebola, em 1995, perto de Kikwit, no Zaire.REUTERS

A crise do ebola começou em março para a opinião pública ocidental, mas na África a desgraça sempre tem raízes mais profundas, mananciais recônditos, sinais escritos em uma linguagem críptica e premonitória. Foi em 6 de dezembro de 2013, quando um menino de dois anos chamado Émile morreu em Meliandou, uma cidade da prefeitura de Guéckédou, no sul da Guiné. A morte de um menino na África é um evento muito corrente para levantar uma única sobrancelha, mas pouco depois tiveram o mesmo destino sua mãe, Sia, sua avó Koumba e sua irmã de três anos Philomène, o que não é mais tão comum nem nas zonas rurais da Guiné. Todos tinham sofrido com febre alta, vômitos e diarreia, mas ninguém suspeitou qual poderia ser a causa de tanta maldição familiar.

Os enterros nesta zona do mundo implicam com frequência um contato direto com os cadáveres, e este foi justo o caso da cerimônia fúnebre da avó Koumba, onde um dos participantes se contagiou e levou consigo a desgraça à cidade próxima, onde ele vivia. Pouco depois, um trabalhador de saúde de Guéckédou também se contaminou e serviu como foco secundário para espalhar a doença a Macenta, Nzérékoré e Kissidogou. Já era fevereiro e o pior surto de ebola da história caminhava a passos firmes pela África Ocidental, uma região onde ninguém esperava que pudesse acontecer algo assim.

Aquele primeiro surto de 1976 causou umas 400 mortes, o suficiente para chamar a atenção dos epidemiologistas ocidentais

O menino Émile é o que os epidemiologistas chamam de “caso índice” do atual surto. Não é necessariamente a origem exata da epidemia, mas é o mais próximo que a pesquisa conseguiu chegar dela. No final de março, quando se reconheceu a natureza do vírus e o alerta de Médicos Sem Fronteiras chegou à Organização Mundial de Saúde (OMS), já tinham ocorrido 111 casos nessas quatro prefeituras da Guiné, com 79 mortes. O último relatório da OMS, com data do dia 10 de outubro, informa 8.376 casos – entre confirmados, prováveis e suspeitos – e 4.033 mortos. A doença se espalhou da Guiné para a Libéria, Nigéria, Senegal e Serra Leoa, sem contar os dois casos isolados nos Estados Unidos e na Espanha, dos quais todos falamos sem parar esta semana. Desde 1976, o vírus matou mais de 4.200 pessoas.

O que tem de especial este surto para ter se convertido no pior da história? “O vírus é o mesmo que nos surtos anteriores da República Democrática do Congo e de Uganda”, diz em entrevista telefônica Ron Behrens, professor titular da London School of Higiene & Tropical Medicine (LSHTM). “Inclusive em nível de DNA, trata-se do mesmo vírus, apesar de alguns polimorfismos” (mudanças de ‘letra’ no DNA ou mais exatamente no RNA, a molécula irmã que serve de material genético ao ebola).

O surto das cidades

“O que é realmente diferente deste surto”, continua Behrens, “é que ocorreu no oeste da África, e não apenas em zonas rurais como os anteriores, mas nas cidades, onde a densidade da população é mais alta; o vírus atual não tem capacidade de contágio de pessoa a pessoa maior do que o habitual; o que acontece agora é que há mais gente ao redor suscetível a ser infectada.”

O diretor do LSHTM é o codescobridor do ebola Peter Piot, que tampouco oculta sua surpresa pelos aspectos deste surto que não tem precedentes. “É a primeira vez que países inteiros foram afetados”, escreve no WorldPost: “É a primeira vez que as capitais com grandes populações urbanas estão envolvidas; e é a primeira vez que o vírus é diagnosticado fora da África. Nos 38 anos que estou trabalhando com o ebola, nunca pensei que o vírus tomaria estas dimensões, convertendo-se de um pequeno surto em uma horrível crise humanitária.”

Os cientistas acham muito improvável que o caso da enfermeira espanhola, ou os casos similares nos EUA e Brasil, levem a surtos nos países ocidentais

O vírus deve seu nome ao rio Ebola, um humilde afluente do rio Mongala que, por sua vez, corre em direção ao rio Congo e que só apareceria nos livros mais grossos de geografia se não fosse pelo agente infeccioso que surgiu ali em 1976 e que hoje supera em fama até mesmo o vírus da gripe aviária e os príones das vacas loucas. Aquele primeiro surto há 38 anos causou pouco mais de 400 mortes, o suficiente para chamar a atenção dos epidemiologistas ocidentais. Contribuiu para isso a forma espantosa como matava os infectados, com um quadro de hemorragias generalizadas de tal envergadura que chegou a ser descrita na época como “o corpo explodindo por dentro”. Que isso seja um exagero é provavelmente um pobre consolo para os contagiados.

Um dia de setembro de 1976, um piloto de Sabena Airlines, a antiga empresa aérea nacional de Bélgica, levou uma garrafa térmica e uma carta ao laboratório de Amberes onde trabalhava o jovem Peter Piot. A carta era de um médico de Kinshasa, a capital da República Democrática do Congo (na época, o Zaire), e explicava que a garrafa térmica continha uma amostra de sangue de uma freira que tinha acabado de morrer em Yambuku, uma aldeia perto do rio Ebola, como consequência de uma doença enigmática. O médico pedia aos cientistas belgas que tentassem confirmar se era febre amarela.

Piot colocou sua bata branca – uma proteção que se considerava adequada na época –, abriu a garrafa térmica, afastou com o dedo uma ampola que tinha quebrado e utilizou a outra, que estava intacta, para fazer os testes. Não era febre amarela. Tampouco era febre de Lassa, nem tifo. Mas havia algo na ampola, porque quando foi injetada em ratos, estes começaram a morrer um depois do outro em uma sucessão arrepiante.

Quando colocou uma mostra no microscópio, Piot exclamou: “Que diabo é isso?”. Era um vírus grande e comprido com forma de verme

Quando colocaram uma mostra no microscópio, Piot exclamou: “Que diabo é isso?”. Era um vírus grande e comprido com forma de verme. A única coisa parecia que tinha visto antes era outro vírus chamado Marburg, que tinha causado um surto de febres hemorrágicas que uma década antes havia matado um grupo de pesquisadores em um laboratório dessa cidade universitária alemã. Piot foi, pouco depois, um dos primeiros cientistas que viajaram ao Zaire para estudar a misteriosa epidemia. Já faz agora 38 anos.

Behrens, como o resto dos cientistas que conhecem o vírus, acha muito improvável que o caso da enfermeira espanhola, ou os casos similares nos Estados Unidos e Brasil, levem a surtos nos países ocidentais. “Apenas se o caso índice não for detectado a tempo é que poderia ser problemático”, diz. “Não acho que o risco seja muito alto.”

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Mas a epidemia da África Ocidental é a pior da história e está causando um massacre. “O que falta não é tanto dinheiro, mas recursos humanos. É muito difícil conseguir técnicos que viajem para lá”, acrescenta Behrens.

Ninguém inventou ainda o turismo virológico.

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