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A Flip chega à adolescência

Começa mais uma Festa Literária de Paraty, a mais famosa do gênero no Brasil, que completa 12 anos abrindo espaço ao pensamento indígena e à América Latina

Paraty se prepara para receber a 12ª Flip.
Paraty se prepara para receber a 12ª Flip.Fernando Frazão (Agência Brasil)

Quando dizem que a maturidade chega com o tempo, não é à toa, e essa máxima vale tanto para as pessoas como para as celebrações culturais. A Festa Literária de Paraty (Flip), que depois de 12 anos de existência é o evento literário brasileiro de maior visibilidade dentro e fora do país, é prova disso. Depois de pouco mais de uma década de prós e alguns contras, essa festa dos livros que acontece entre os dias 30 de julho e 3 de agosto em uma charmosa cidade do litoral do Rio de Janeiro, prova que ganhou personalidade, dando atenção a dois temas de total vigência no cenário de hoje: o pensamento indígena no Brasil e os laços entre brasileiros e seus vizinhos latino-americanos.

Esse passo seguro parece estar atrelado a um jovem curador, que no entanto nega o esforço de imprimir uma marca pessoal à programação do evento. “A meu ver, isso seria um engano, porque a Flip tem uma tradição. Tentei observar grandes momentos que a festa já teve, não para reproduzi-los, mas para recriá-los com novos convidados e conteúdos”, explica o jornalista e editor Paulo Werneck, de 36 anos. Sob seu comando, a Flip continua apostando em nomes célebres da literatura nacional e também da internacional – sempre dentro do formato que a consagrou, o de mesas de leituras e conversas entre escritores cujas trajetórias literárias encontram pontos em comum. Mas – ainda bem – resolveu olhar um pouco mais para os lados.

Em termos gerais, Werneck chegou trazendo da sua experiência em jornalismo a qualidade de destacar temas quentes e estabelecer diálogos. Junto à homenagem ao escritor, ilustrador, humorista e dramaturgo brasileiro Millôr Fernandes, reconhecido por seu estilo irreverente e satírico, o grupo de autores brasileiros se destaca por respirar ares jovens e, com diferentes matizes, fazer críticas ao poder, como comprovam as obras de escritores como Marcelo Rubens Paiva (Feliz ano velho; Não es tu, Brasil) Fernanda Torres (Fim), Antonio Prata (Meio intelectual, meio de esquerda; Nu, de botas) e Eliane Brum (A vida que ninguém vê; Uma duas).

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Mas as mudanças mais chamativas são outras. Primeiro, o “núcleo amazônico” que aparece pela primeira vez, composto pelo líder indígena yanomami David Kopenawa, pela fotógrafa Claudia Andujar e pelos antropólogos Beto Ricardo e Eduardo Viveiros de Castro. Todos intelectuais ligados a causas indígenas frequentemente ignoradas no país. Depois, a presença notável de quatro autores da América Latina hispânica, que nunca foi muito bem representada na programação. São eles o chileno Jorge Edwards, o mexicano Juan Villoro, a argentina Graciela Mochkofsky e o peruano Daniel Alarcón, ícones de quatro gerações e estilos literários bem diferentes. “A literatura latino-americana em espanhol vive um boom que, sendo editor, posso notar depois de acompanhar essa evolução no meu trabalho. No Brasil, apesar da proximidade, não estamos a par disso. É tarefa da Flip ajudar a transpassar esse tipo de barreiras culturais”, esclarece o curador.

Aproximar o Brasil do resto do mundo, de certa maneira, é algo que a Flip faz desde seus primeiros passos. A ala internacional é sempre representativa e costuma atrair grande parte do público que lota Paraty ao longo dos cinco dias de evento. Alguns nomes célebres da vez são o editor estadunidense Glenn Greenwald, que publicou no The Guardian uma série de reportagens feitas a partir dos documentos revelados por Edward Snowden; o escritor Vladímir Sorókin, o primeiro russo a participar de uma Flip, tido como o principal representante literário da resistência Governo Putin; e a escritora britânica Jhumpa Lahiri, filha de indianos e ganhadora de um prêmio Pulitzer que aborda temas como nacionalismo e imigração. Outros hits que merecem ser citados são os norte-americanos Andrew Solomon e Michael Pollan e o suíço Joël Dicker.

Mas nem tudo são flores. Uma das críticas que ainda se faz ao evento é a presença minguada de escritoras. Dos 47 convidados, apenas sete são mulheres – 15% do total. É uma parcela bem inferior à dos homens, como se observa no meio editorial como um todo, e que merece ser revista ao longo de toda cadeia. Werneck concorda: “É uma questão a se batalhar. Essa marca acompanha o próprio mercado, em que há mais homens lançando livros. Mas sem dúvida pode e deve ser melhorada”. Aí está mais uma missão plausível para uma festa de gente grande.

Dias de Millôr

Um dos mais importantes jornalistas, dramaturgos, escritores e cartunistas brasileiros, Milton Viola Fernandes é o homenageado da FLIP deste ano.

Nascido no Rio de Janeiro em 1923, Millôr, como era conhecido, teve a irreverência e inteligência como suas maiores marcas e passou pelos maiores veículos de imprensa brasileiros, incluindo os que surgiram durante a ditadura militar e hoje estão extintos, como O Cruzeiro, O Pasquim e Pif Paf.

Ao longo dos mais de 70 anos de carreira, o jornalista ganhou fama por suas colunas de humor, cheias de sátiras e ironias. Publicou mais de 20 livros, escreveu diversas peças de teatro, espetáculos musicais e centenas de crônicas. Millôr definitivo – A Bíblia do Caos é uma de suas obras mais conhecidas, com 5.142 frases do autor, que morreu em 2012, aos 88 anos, depois de sofrer um acidente vascular cerebral.

Durante a FLIP, serão publicadas cinco edições de um jornal batizado de Daily Millor, com intervenções feitas por convidados do evento, como Antonio Prata, Chico Caruso, Luis Fernando Veríssimo e Ivan Fernandes, filho de Millôr.

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