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Investigações sobre ossadas de Perus devem ser reabertas

Famílias de desaparecidos durante a ditadura renovam a esperança de encontrar restos mortais de parentes que podem ter sido enterrados em vala clandestina

Marina Rossi
Algumas das ossadas desenterradas de Perus, em 1990. / FOLHAPRESS
Algumas das ossadas desenterradas de Perus, em 1990. / FOLHAPRESS

Na manhã do dia 04 de setembro de 1990, centenas de sacos com ossos foram desenterrados do cemitério Dom Bosco, na zona noroeste da cidade de São Paulo. A chamada “vala comum”, onde são enterrados corpos de pessoas que não foram identificadas pela polícia ou seus familiares, tinha 50cm de largura, 2,70 metros de profundidade e 30 metros de comprimento, o equivalente a dois ônibus urbanos enfileirados.

À medida em que era desenterrado, o conteúdo da maior vala clandestina encontrada até então no país se transformava em uma pilha de sacos com restos mortais de identidades de pessoas desconhecidas, contabilizando, no final, 1.049 ossos. Era sabido, porém, que os corpos de militantes políticos desaparecidos durante a ditadura brasileira (1964-1985) também estavam ali.

Começava ali um dos capítulos mais obscuros da história brasileira. Até hoje, 24 anos depois, as chamadas “ossadas de Perus” ainda não foram identificadas em sua totalidade, mesmo depois de passar por duas universidades brasileiras, a Universidade de Campinas (Unicamp), e a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), e perícias da polícia científica do Instituto Médico Legal (IML).

Na semana passada, outra universidade resolveu entrar no caso. A Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) assinou um protocolo de intenções com a Secretaria de Desenvolvimento Humano, a Câmara dos Deputados e a Comissão de Mortos e Desaparecidos, para “colaborar com o processo de investigação”, como explicou o professor da Unifesp, Javier Amadeu.

“Antes de tudo, temos que aprender com a experiência anterior”, explica Amadeu. “Por isso, estabelecemos algumas questões como fundamentais para essa retomada das investigações”, explica Amadeu. Além de contar com a participação de uma equipe internacional de investigação, a Unifesp vai formar um grupo interdisciplinar, com médicos legistas, antropólogos e profissionais dos direitos humanos. “Não estamos analisando apenas ossos, mas identificando pessoas mortas pela ditadura cujos restos foram ocultados”, completa. O professor relata que haverá a participação dos familiares no acompanhamento direto das investigações. “Isso é fundamental para garantir o sucesso do processo”, afirma.

A expectativa é de que entre 15 e 20 identidades sejam descobertas nessa retomada das investigações, que, ainda segundo ele, devem recomeçar neste semestre.

A abertura da vala de Perus, em 1990, ocorreu depois que o jornalista Caco Barcellos, da TV Globo, iniciou uma investigação sobre a violência da Polícia Militar contra civis. Por meio de registros do IML e de documentos levantados, Barcellos acabou chegando ao cemitério Dom Bosco. Lá, com a ajuda do depoimento do administrador do cemitério e de informações de desaparecidos políticos durante a ditadura recém-terminada, o jornalista descobriu que alguns militantes também poderiam estar enterrados na vala clandestina, aberta logo após a inauguração do cemitério, em 1971.

De Perus, as ossadas foram então enviadas, no dia 1º de dezembro de 1990, para a Unicamp, onde, sob coordenação do médico legista Fortunato Badan Palhares, seriam catalogadas, classificadas e estudadas para que as identidades fossem descobertas.

Na Unicamp, as ossadas ficaram por 20 anos. Nessas duas décadas, foram identificados seis desaparecidos políticos: Dênis Casemiro (1946-1971), Sônia Maria Lopes de Morais Angel (1946-1973), Antônio Carlos Bicalho Lana (1949-1973), Frederico Mayr (1948-1972), Helber José Gomes Goulart (1944-1973) e Emanuel Bezerra dos Santos (1943-1973).

Ainda havia muito trabalho pela frente mas as investigações começaram a ficar cada vez mais lentas, até que pararam de vez. Em 1997, o legista Eduardo Zappa, que havia assumido o caso depois de as famílias dos desaparecidos políticos pedirem o afastamento de Badan Palhares - alegando omissão e demora no trabalho - anunciou que o trabalho havia sido encerrado. Pouco antes disso, parte das ossadas foi enviada à Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que se prontificou a colaborar com a investigação, mas nada foi descoberto e o material foi devolvido.

Caso na Justiça

De 1997 a 2001, as ossadas ficaram na Unicamp à mercê de alguma decisão do Estado. As famílias dos desaparecidos políticos, que outrora tiveram a esperança de encontrar e enterrar os corpos de seus parentes, passaram a brigar na Justiça para que alguma medida fosse tomada pela retomada das investigações. O caso foi parar no Ministério Público em 1999, quando um inquérito foi aberto para investigar a extrema demora nas providências de identificação das ossadas, responsabilizar e processar os responsáveis pelo descaso.

A partir da intervenção do Ministério Público, a Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo enviaria as ossadas da Unicamp para o Instituo Médico Legal de São Paulo, em 2001. O restante, quase a totalidade, foi encaminhado ao columbário do Cemitério do Araçá, na zona oeste de São Paulo, onde estão até hoje, 24 anos depois da descoberta da vala clandestina de Perus.

Sob coordenação do legista Daniel Muñoz, essas ossadas que foram enviadas ao IML começaram a ser investigadas. E, mais uma vez, o capítulo dessa história tem uma página em branco. Nenhuma identidade foi descoberta. A superintendente da Polícia Científica de São Paulo, Norma Bonaccorso, que fez parte desta etapa das investigações juntamente com Muñoz, diz que, nesses casos de identificação de ossos que já estão há muitos anos se decompondo, menos da metade do material tem êxito na identificação. “Conversando com uma especialista, ela me disse que apenas 30% das ossadas, no máximo, seriam identificadas”.

E, além desse baixo percentual de identificação, segundo Bonaccorso, ainda havia outro problema: faltava verba e infraestrutura adequada para que a investigação fosse levada adiante. “Nós nunca recebemos nenhum incentivo financeiro para realizar as investigações. Não havia uma equipe específica para isso”, diz. “Eu mesma não fui designada a nada. Me convidaram para que eu apenas desse uma orientação ao IML”.

Sobre o problema financeiro, o procurador regional dos direitos do cidadão, Pedro Machado, responsável pela ação no Ministério Público hoje, é categórico: “O problema não é dinheiro. Do ponto de vista orçamentário, se deu mais importância ao pagamento de indenizações do que para as pesquisas e identificações dos desaparecidos”, diz. “Hoje, existem duas comissões, uma de mortos e desaparecidos, e outra da anistia. Quanto se gastou com pagamento de indenização da anistia e quanto foi gasto com a comissão de desaparecidos? A diferença é grotesca”.

Segundo a Comissão da Anistia, desde que passou a existir, em 2001, 63.000 casos, entre pedidos de indenizações e reconhecimento e desculpas públicas por parte do Estado, foram julgados. Desses, 40.300 foram deferidos. Mais de três bilhões de reais foram pagos entre 2011 e 2013 a título de indenizações. Procurada três vezes, a Secretaria dos Direitos Humanos, responsável pela comissão de mortos e desaparecidos, não falou com a reportagem do EL PAÍS para informar quanto já havia sido investido nas investigações.

Foi só em 2005, quando a Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos da Secretaria dos Direitos Humanos contratou um laboratório particular, identificaram as ossadas de dois desaparecidos políticos: Flavio de Carvalho Molina (1947-1971) e Luiz José da Cunha (1943-1973).

Último capítulo?

O documento assinado na última semana pela Unifesp é apenas um pequeno passo para que as investigações sejam retomadas. Ainda é preciso determinar uma equipe com especialistas em antropologia e arqueologia forense, que receberá uma consultoria de especialistas da Argentina e do Peru. Ainda é preciso encontrar um local para que o material seja analisado, já que as famílias não querem que o espaço seja nas dependências do IML, pelo histórico de descaso do Instituto apontado por elas.

Mas, ainda assim, o país aguarda que as ossadas ganhem identidades, escrevendo, por fim, um capítulo diferente de todos os outros já contados sobre os ossos de Perus.

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