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Um papa em busca de um povo

O papa Francisco conseguiu acalmar as lutas internas no Vaticano e deu voz aos católicos comuns, para que opinem sobre os temas mais espinhosos para a Igreja

O cardeal Tarcisio Bertone durante despedindo-se do papa Francisco no Vaticano, em 15 de outubro. (Fotogaleria em espanhol)
O cardeal Tarcisio Bertone durante despedindo-se do papa Francisco no Vaticano, em 15 de outubro. (Fotogaleria em espanhol)EFE

Não estão entre suas frases mais elogiadas, mas talvez sejam as que melhor reflitam a atitude do papa Francisco diante da Igreja e da vida. Foram pronunciadas no voo quando retornava de sua viagem ao Rio de Janeiro, sobre a discussão de sua própria segurança, que surgiu depois de uma multidão ter avançado o pequeno carro em que viajava sem escolta e com as janelas abertas. “A segurança é confiar em um povo”, disse Jorge Mario Bergoglio, “sempre existe o perigo de que um louco faça algo, mas a verdadeira loucura é colocar um espaço blindado entre o bispo e o povo. Prefiro o risco a essa loucura”.

Há alguns dias, na terceira grande entrevista concedida desde que foi eleito, Francisco disse que não gosta de comparações, tampouco que o qualifiquem como um super-homem. Mas, à espera que se concretizem as reformas, o que Francisco conseguiu, agora que completa um ano desde que, em 13 de março de 2013, o então arcebispo de Buenos Aires apareceu no balcão da basílica de São Pedro, dando uma sincera boa tarde, de fato pode-se considerar uma proeza. Apagou um passado recente de guerras de poder entre cardeais, mordomos ladrões e banqueiros que temiam serem assassinados– os famosos corvos que sobrevoavam o Vaticano— que foram substituídos pelo povo.

Fora da sede episcopal, já há dados para confirmar que se Francisco pretende algo — e em parte está conseguindo— é derrubar a blindagem de incompreensão mútua que separa a Igreja oficial dos católicos comuns. Até agora, eram os fiéis que tentavam entender o Papa. Agora é o Papa que, não sem resistências do Vaticano, tenta entender o que acontece com o povo.

Ou não chama a atenção que o Vaticano —doutores segundo a Igreja— tenha enviado às conferências episcopais em todo o mundo um insólito questionário com 38 perguntas para que sejam distribuídas entre os fiéis, pedindo-lhes sua opinião sobre questões tão ousadas como a atenção pastoral aos casais do mesmo sexo ou a abertura dos sacramentos aos divorciados dispostos a casar? Ainda não se sabe até onde chegarão os debates levantados pelo papa Francisco, nem se conseguirá por ordem nas finanças, ou se as mulheres deixarão de ter um papel tão secundário na Igreja, ou se fará uma reparação às vítimas de pedofilia, mas o que de fato ficou claro nos últimos 12 meses é que Jorge Mario Bergoglio não está contente com a herança recebida. Ainda que elogie sempre que possa seu antecessor Benedicto XVI – “é como ter o avô em casa”- e tenha santificado João Paulo II – além de colocar no mesmo grupo João XXIII -, suas declarações estão cheias de críticas à maneira pela qual os príncipes da Igreja têm conduzido esses assuntos para o povo de Deus.

Desde seus gestos mais visíveis —nada de luxuosos carros oficiais nem sapatos vermelhos, nem cruzes preciosas— às suas primeiras viagens — à Lampedusa para rezar pelos imigrantes e à Sardenha para reunir-se com as vítimas da crise—, passando por seu primeiro anúncio de metas diante de jornalistas de todo o mundo —“como desejaria uma Igreja pobre e para os pobres!” — e terminando por suas alfinetadas constantes à cúria: “A corte do Vaticano é a lepra do papado. A cúria tem uma visão vaticano-cêntrica e se esquece do mundo que nos rodeia. Não compartilho desta visão e farei todo o possível para mudá-la.” E já está fazendo. Às vezes, às claras, criando organismos para coibir uma longa tradição de obscuros abusos financeiros ou eliminando atribuições da Secretaria do Estado. Outras vezes mudando um peão aqui, outro ali, equilibrando poderes, utilizando sua solidão acompanhada —escolheu viver em Santa Marta para que não lhe isolassem como a Joseph Ratzinger — para proteger-se das armadilhas dos nostálgicos. Caiu em algumas —horas depois de nomear o monsenhor Ricca para controlar o Instituto para as Obras da Religião (IOR), seus escândalos sexuais do passado foram espalhados pela cúria —, mas saiu vitorioso graças precisamente a essa disposição de enfrentar os problemas sem esconder-se.

Ao ser questionado sobre o assunto durante o voo na volta do Rio de Janeiro —por uma hora e meia foi submetido às perguntas dos jornalistas sem impor nenhuma restrição—, respondeu de maneira simples: “Penso que muitas vezes na Igreja —com relação a este caso e outros—, buscam-se os pecados da juventude. E são publicados. Não são delitos, os delitos são outra coisa. Os abusos de menores são delitos. Me refiro aos pecados. Mas se uma pessoa —laico, padre ou freira— comete um pecado e depois se arrepende, o Senhor perdoa. E nós não temos direito a não perdoar”.

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