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Coluna
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Pastéis de queijo para Mikhail Gorbachev

Luziane, a moça que vendia quitutes na redação, havia, sem saber, enfrentado um dos homens mais importantes e poderosos do mundo

Em 1993 o presidente da República era Itamar Franco, o ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, e a moeda, o cruzeiro real. Eu trabalhava como redator no Jornal da Tarde, de São Paulo, e aguardava, ansioso, o nascimento da minha filha, Helena. Mikhail Gorbachev estava no auge de sua popularidade. Responsável pelas reformas política (glasnost) e econômica (perestroika) que possibilitaram o fim da guerra fria e, ao mesmo tempo, resultaram na dissolução da União Soviética, vivia de ministrar palestras ao redor do mundo. Numa destas, acabou dando os costados no jornal O Estado de S. Paulo, cuja redação funcionava no mesmo andar da do Jornal da Tarde, separadas apenas por um estreito corredor.

Todos os dias, às cinco horas da tarde, Luziane descia do sétimo andar empurrando um carrinho lotado de guloseimas. Estacionava-o num canto e aguardava a chegada dos jornalistas, de ambas as redações, que rapidamente esgotavam suas provisões. Em geral, oferecia coxinhas, rissoles, quibes, enroladinhos de salsicha, esfirras, chocolates e refrigerantes. Mas, durante alguns meses de 1993, a cantina resolveu inovar e, além de salgadinhos e doces tradicionais, Luziane trazia também pastéis quentinhos, de carne e de queijo, que, por serem poucos, eram disputados por meio de empurrões e cotoveladas. Depois, ela percorria o sexto andar, mesa em mesa, cobrando a conta. Quase nunca lhe davam calote. Até porque, compreendíamos, ela é quem pagava a diferença do caixa, se houvesse.

A entrada de Gorbachev na redação de O Estado de S. Paulo ocorreu de maneira espalhafatosa. Acompanhado pela mulher, Raisa, por diretores da empresa e políticos, e cercado por seguranças enormes, tensos e carrancudos, o ex-líder soviético seguiu arrastando seu séquito, simpático, porém intangível. Então, alguém, querendo lhe agradar, dirigiu-se ao carrinho de Luziane, que acabara de baixar do sétimo andar, e, tomando dois pastéis de queijo, repassou-os às mãos de Gorbachev e Raisa, explicando ser aquilo “uma iguaria brasileira”, conceito que a tradutora deve ter se esforçado para transmitir ao casal. Não lembro se eles experimentaram os pastéis ou se, polidos, apenas agradeceram a gentileza, reencaminhando-os a algum assessor. Sei que, como chegaram, começaram a sair, feito um trem que, após breve parada na estação, retoma os trilhos, apressado.

V.P. era conhecido pelas brincadeiras, muitas de mau gosto, que perpetrava nos colegas. Sempre atento a oportunidades para exercitar suas zombarias, percebeu a retirada iminente de Gorbachev e denunciou-o à Luziane, Olha lá, aquele careca está indo embora sem pagar. Imediatamente, ela largou o carrinho e, correndo, intrometeu-se no meio do cortejo, sem dificuldades, franzina que era. Quando os seguranças perceberam, Luziane já se encontrava de pé, dedo em riste, gritando para um boquiaberto Gorbachev, O senhor não vai embora sem pagar não! Depois eu que tenho que arcar com o prejuízo! Diante da incredulidade da comitiva, que não entendia o que estava acontecendo, alguém desembolsou uma nota que cobria com folga a despesa, entregou-a com descaso a Luziane, e, pensando em se desvencilhar dela com presteza, falou, Pode ficar com o resto. Mas ela, paciente, sem arredar um milímetro do lugar onde se plantara, contou e recontou o troco, devolveu o dinheiro excedente, agradeceu, e, só então, o grupo voltou a se movimentar.

Luziane retornou com um sorriso vitorioso, tendo sido discretamente aplaudida por alguns jornalistas. Ela havia, sem saber, enfrentado um dos homens mais importantes e poderosos do mundo, apenas com seu corpo frágil e sua determinação de sobrevivente.

Raisa morreu seis anos depois, de leucemia. Aos 82 anos, Gorbachev continua dando palpites na política interna da Rússia, embora suas idéias hoje pouco influenciem a opinião pública.

De Luziane, não se sabe. Em algum momento no final da década de 1990 regressou para o interior de Pernambuco. Talvez ainda esteja por lá, enfrentando, com seu corpo frágil e sua determinação de sobrevivente, os poderosos do mundo...

Luiz Ruffato é escritor

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