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Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

O copo meio cheio ou meio vazio

A visão sobre a América Latina difere conforme se olhe a partir dos Andes peruanos ou dos vulcões mexicanos Por um lado há maior maturidade, mas por outro persistem a corrupção, a criminalidade e uma perversa propensão à liderança carismática

Enrique Krauze
ENRIQUE FLORES

Há alguns meses, Mario Vargas Llosa e eu travamos um diálogo sobre a América Latina na Universidade de Princeton. Ao longo de sua vida e em sua obra, sua visão tem sido pessimista, às vezes inclusive fatalista, mas em tempos recentes ela foi mudando, e essa mudança, parece-me, tem fundamentos na realidade. Na conversa, confrontamos nossas respectivas impressões. Ele vê o copo meio cheio; eu, o copo meio vazio.

Numa ideia básica concordamos: nossos países têm feito progressos notáveis nos últimos anos. Basta um mínimo de memória para apreciar que, em comparação à época dos golpes de estado, dos regimes militares e das guerrilhas, dos anos das inflações estratosféricas e das espetaculares quebras, a América Latina apresentou (em geral) uma maturidade sem precedentes na sua infeliz história. Nossa tendência à anarquia e à ditadura derivou em um respeito ao menos formal pela democracia eleitoral. Igualmente alentador foi o desempenho econômico em meio à crise global: sofremos seus efeitos, mas muitas economias mostraram uma solidez tão inesperada como invejável. Além disso, muitos Governos aprenderam a lição de não relegar os problemas sociais até que estourem, e executam programas de atendimento à população mais pobre e marginalizada.

Para Vargas Llosa, o melhor exemplo de progresso é o seu próprio país, o Peru, que sempre foi motivo de aflição, e agora é de orgulho. Não é para menos. O país cresce, a democracia se sustenta, os programas sociais funcionam. Ele mencionou alguns exemplos de ascensão social alucinantes, casos de famílias que passaram da pobreza ao sucesso global (na indústria têxtil, por exemplo). O mais surpreendente de tudo – disse ele –é a forma como o progresso material está aparando as duras arestas do racismo peruano: “Agora, os protagonistas da economia, visíveis no comércio e a indústria, são cholos”, ou seja, os mestiços (filhos de índios de origem inca e de brancos de raízes espanholas), sempre relegados pela arrogante aristocracia. E os indígenas estão ainda descendo de seus milenares bastiões nos Andes para se integrarem ao cadinho nacional. O Peru está muito longe de ser o Éden mitológico que representou em algum momento para a imaginação europeia (há intensos protestos sociais no setor minerador e casos sérios de corrupção), mas está –não há dúvida – a caminho de ser um país menos pobre, dividido e desigual do que foi durante séculos.

A proclividad à anarquia e a ditadura derivou no respeito formal à democracia

A conversa tocou de passagem em vários países. O Uruguai, onde um Governo social-democrata de esquerda moderada não só dá um exemplo de responsabilidade econômica e continuidade democrática como também ocupa um lugar de vanguarda em temas delicados como a liberalização do uso da maconha. O Brasil, o gigante da região, cujo impressionante desenvolvimento nos últimos anos se deve, em parte, à continuidade de três sucessivos líderes de uma esquerda reformista e moderna: um teórico ex-marxista (Fernando Henrique Cardoso), um líder operário radical (Luiz Inácio Lula da Silva) e uma ex-guerrilheira (Dilma Rousseff). A Colômbia, o inferno do narcotráfico, da guerrilha revolucionária e do poder paramilitar, delimitou a violência e provavelmente conseguirá assinar a paz com o mais antigo grupo guerrilheiro. O Chile, apesar das cicatrizes políticas deixadas pelo golpe contra Allende e a ditadura de Pinochet, colhe os frutos de sua quase bicentenária tradição republicana.

Vargas Llosa argumentou que o chamado “socialismo do século XXI” inventado por Hugo Chávez não tem atrativos para as jovens gerações no continente. Ninguém mais sonha em imitar o Che Guevara. Ele recordou, aliás, a aguda crise econômica da Venezuela e a resistência dos operários venezuelanos às medidas de um regime que se sustenta pela mentira pública sistemática, o saque do petróleo e a corrupção que envenenou o próprio Exército. Mas essa situação, salientou, não pode perdurar.

Em sua exposição, ele mencionou dois sinais de alarme: a criminalidade e a corrupção. Cabe combatê-las apenas persistindo na construção de instituições sólidas, nas quais se respeite o Estado de direito. Mas ele concluiu com uma nota positiva: “Na América Latina, já podemos falar de um consenso sobre a democracia e a liberdade de mercado, seja em sua variante liberal ou social-democrata”.

Minha postura geral foi algo distinta. Acredito que, por razões culturais e ideológicas profundas, o populismo em suas diversas variantes (do peronismo ao chavismo) seja uma realidade e ainda uma tentação permanente na América Latina. A propensão à liderança carismática é tão profunda que a legendária Evita Perón segue governando a Argentina (pela interposta pessoa de Cristina Kirchner), e Chávez fala durante as noites ao errático presidente Maduro. É verdade que a Alba, organização supranacional idealizada por Chávez com a participação de países como Bolívia, Equador e Nicarágua, apagou-se depois da morte do caudilho, mas seus respectivos presidentes podem se eternizar no poder sem que ninguém os impeça. Nesse contexto, a situação na Venezuela é particularmente triste, e o papel da OEA é imperdoável. Os mesmos países que há alguns anos ergueram sua voz irada no golpe de Honduras permitem que na Venezuela e em outros países da Alba as liberdades cívicas sejam sufocadas até que a democracia se torne impraticável.

Em México há regiões inteiras ocupadas pelo crime e a discórdia política freia as melhorias

“E o México? Como vai o México?”, perguntou Vargas Llosa. “Há perigo de que o narcotráfico se infiltre no poder político?” O que precisei dizer não o alegrou. Por um lado, expliquei como regiões inteiras do México já estão ocupadas pelo crime (em todas as suas variantes), de modo que os criminosos não precisam se infiltrar num poder que na prática eles já detêm. Por outro lado, apontei a ele a persistente discórdia política. A euforia pela transição democrática do ano 2000 ficou no esquecimento. Depois do fracasso dos dois Governos sucessivos do PAN, a volta do PRI foi vivida por alguns como uma regressão. E a esquerda, que nas eleições de 2012 pôde e no meu entender devia ter tido a sua vez, preferiu uma liderança radical a um moderado que tivesse atraído as simpatias de todo o espectro político.

Foi uma oportunidade perdida porque, na América Latina (como na Espanha com o PSOE), as grandes reformas têm sido feitas, em geral, por Governos de esquerda que abandonam toda a retórica revolucionária em troca da via reformista, adotando esquemas liberais ou sociais-democratas. O México não teve essa sorte, o México não teve um Cardoso, um Lula ou uma Rousseff. Neste ano recém-terminado, o Governo de Enrique Peña Nieto aprovou várias reformas importantes, que podem modernizar a economia e alentar o crescimento, mas, na percepção nacionalista de muitos mexicanos, seu Governo é servo do capitalismo internacional. O ano de 2014 será crucial: da execução eficaz e rápida das reformas, da sua transparência e dos seus resultados dependerá a continuidade da democracia mexicana.

E Cuba? Nem Vargas Llosa nem eu falamos de Cuba. Foi uma omissão importante, por seu enorme valor simbólico. Os conflitos entre os Estados Unidos e a América Latina começaram em 1898, na guerra contra Espanha, e se acumularam até explodirem em Cuba em 1959. A Revolução Cubana foi o motor ou a inspiração das tendências revolucionárias dos anos setenta e oitenta, que enfrentaram os atrozes regimes militares do Chile, da Argentina e da América Central. Nas duas últimas décadas, os conflitos (e o antiamericanismo associado a eles) decresceram, mas o chavismo os reavivou. O Governo Obama pode escrever o último ato do libreto latino-americano: o fim do embargo contra Cuba em troca de uma abertura política seria um final feliz, a sala de espera de algo nunca visto na América Latina: todo um continente democrático. Ainda parece distante.

O público em Princeton deixou a sala silencioso. Dos Andes peruanos, o futuro da América Latina se vê meio cheio; dos vulcões mexicanos, se vê ainda meio vazio.

Enrique Krauze, escritor mexicano, é diretor da revista Letras Libres.

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