Depoimento alimenta críticas a Moro e sugere rota de condenação de Lula
Especialistas comentam audiência frente a caracterização de crimes do qual petista é acusado Defesa questiona juiz e , ao lado da acusação, pede que mais testemunhas sejam ouvidas no processo
O depoimento do ex-presidente Lula ao juiz Sérgio Moro, nesta quarta-feira, expôs novamente vários dos dilemas da Operação Lava Jato. Além do abundante testemunho de delatores, como provar a culpa e condenar um réu por crimes que por sua própria natureza são cometidos na surdina, sem recibos, documentos assinados e comprovantes de pagamento? De novo, a operação também levantou críticas a respeito do juiz Sérgio Moro, que, ao não se furtar de falar a apoiadores como um paladino contra a corrupção e defender a força-tarefa de procuradores, ou seja, a acusação, ameaçaria sua posição de julgador imparcial.
Na ação contra o petista, que o acusa de ter recebido vantagens indevidas no valor de 3,7 milhões de reais feitas ao petista pela empreiteira OAS por meio de um tríplex no Guarujá e de dinheiro para o armazenamento de seu acervo, Lula responde pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro por ocultação de bens. Caberá a Moro pesar na balança o conteúdo probatório apresentado. O processo, que caminha para seus passos finais, pode se estender por mais tempo: defesa e acusação pediram ao juiz Moro para ouvir mais testemunhas. Caso o magistrado concorde com as novas oitivas, as alegações finais das partes, que ainda não tinha sequer data marcada, e a sentença serão postergadas.
Nos itens abaixo, passamos em revista as controvérsias envolvendo Moro e os pontos críticos do depoimento de Lula analisados por especialistas, além de outros riscos legais que podem ser obstáculos para o petista.
Questionamentos e a linha argumentativa de Moro
O magistrado já foi alvo de críticas de advogados e juristas, ligados e não ligados aos casos da Operação Lava Jato, por fazer uma espécie dobradinha com o Ministério Público, num alinhamento entre acusação e juiz que não faz parte do arcabouço legal brasileiro. O depoimento de Lula reacendeu as reservas, que também se estendem à prática de determinar conduções coercitivas (depoimentos compulsórios) e aplicar alongadas prisões preventivas a investigados, réus e condenados. Até o caso do habeas corpus concedido a José Dirceu no Supremo Tribunal Federal, as teses de Moro estavam sendo quase que integralmente aceitas pelos tribunais superiores.
Na audiência de quarta-feira o juiz fez mais questionamentos a Lula do que os procuradores. Sua linha argumentativa deu um indicativo de que pode estar inclinado a acatar a tese da acusação de que o ex-presidente era uma espécie de "comandante da propinocracia" envolvendo o PT e a Petrobras. Moro perguntou a Lula sua opinião com relação ao escândalo do Mensalão, por exemplo, fato questionado pela defesa por ser estranho à ação penal envolvendo o tríplex. Mensalão é descrito, porém, como "face da mesma moeda" do escândalo da Lava Jato na denúncia aceita por Moro contra Lula. Em despacho recente para defender a manutenção da prisão preventiva de do ex-ministro Antonio Palocci, o juiz também considera que os dois escândalos estão interligados.
A caracterização dos crimes
Outro ponto no qual o ex-presidente ficou em situação vulnerável foi quando desmentiu durante o depoimento uma nota do Instituto Lula
Nesta ação, Lula responde pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro por ocultação de bens. A defesa do ex-presidente repete que não existem provas concretas sobre a ocorrência de qualquer delito ("Não solicitei, não recebi, não paguei e não tenho nenhum triplex", disse Lula). A acusação conta com o depoimento de diretores e funcionários da empreiteira segundo os quais o imóvel estava "reservado" a Lula como contrapartida a três contratos obtidos com a Petrobras pela empresa. Além disso, a força-tarefa também se apoia nas relações de proximidade do petista com os envolvidos, em provas circunstanciais e deslizes cometidos pelo ex-presidente durante a oitiva.
Especialistas ouvidos pelo EL PAÍS acreditam que a acusação de lavagem de dinheiro será difícil de ser comprovada - uma vez que Lula e sua família não chegaram a tomar posse ou sequer usufruir do apartamento, algo que ocorreu, por exemplo, no sítio de Atibaia frequentado pelo petista, que deve ser alvo de uma ação penal em breve.
"Quando pensamos em crime organizado envolvendo OAS, Odebrecht e outras empresas de estrutura, não podemos achar que haveria uma matrícula em nome de Lula", afirma o jurista Walter Maierovitch. Para ele, nesses casos de corrupção é preciso "construir o quadro probatório, que vai trabalhando com casos indiciários, um indício aqui, outro ali. Você faz um mosaico, e vai encaixando as pedras. Muitas vezes o segredo está em um detalhe", diz. Para a força-tarefa as peças são, em grande parte, agendas com reuniões em datas casadas e pequenas contradições nos depoimentos. Maierovitch diz ainda que para que se configure o crime de corrupção passiva não é necessário que a eventual vantagem se concretize, basta que seja solicitada ou que seja aceita uma promessa de tal vantagem. Ou seja, caso Moro entenda que Lula teria de alguma forma aceitado que a OAS iria lhe repassar o tríplex, já se configura crime.
As contradições de Lula
Um dos deslizes do ex-presidente durante a oitiva foi uma contradição sobre a relação entre o ex-diretor da Petrobras Renato Duque e o ex-tesoureiro do PT João Vaccari Neto. Em um primeiro momento da oitiva o petista disse que ficou sabendo que os dois tinham relação "pela denúncia do Ministério Público Federal (...) eu sei que tinha [amizade entre ambos] porque, na denúncia, aparece que eles tinham relação". Posteriormente ao longo de seu depoimento, Lula afirma que pediu a Vaccari que agendasse reunião com Duque. O pedido teria sido feito em uma data anterior à denúncia contra o ex-diretor da estatal petroleira. De acordo com o Ministério Público, o ex-tesoureiro era um intermediário entre Lula e a OAS nas negociações envolvendo o tríplex e outros crimes investigados pela Lava Jato.
Para Marcelo Figueiredo, professor de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, essas contradições "fragilizam" a defesa de Lula e podem "influenciar o juízo de Sérgio Moro". "Além disso ele foi muito evasivo, por vezes provocativamente evasivo. Em várias respostas, disse não recordar de datas e testemunhas, o que não é bom em uma ação penal", afirma.
Outro ponto no qual o ex-presidente ficou em situação vulnerável foi quando desmentiu durante o depoimento uma nota do Instituto Lula. A mensagem publicada no site da entidade afirma que a família de Lula desistiu de comprar o tríplex "porque, mesmo tendo sido realizadas reformas e modificações no imóvel (que naturalmente seriam incorporadas ao valor final da compra), as notícias infundadas, boatos e ilações romperam a privacidade necessária ao uso familiar do apartamento”. O petista afirmou a Moro que desconhecia a realização de obras no imóvel, e que a nota divulgada não teve sua anuência.
O mosaico de indícios probatórios montado pela acusação leva em conta uma série reuniões feitas por Lula com outros acusados no esquema. O ex-presidente foi questionado sobre as conversas que ele teria tido com o ex-presidente da OAS Leo Pinheiro. Os encontros constavam na agenda do petista, que diz ter discutido com o empreiteiro sobre o tríplex apenas uma vez, no Instituto Lula, e depois "não toquei mais no assunto". Segundo Lula, na ocasião Pinheiro teria dito que ele "precisava conhecer" o apartamento, o que foi feito. Os procuradores então mencionam uma série de reuniões que constam na agenda do ex-presidente, nas quais ele teria encontrado com o empreiteiro. Lula confirma este fato, mas nega que tenham tratado do tríplex.
Mais adiante na audiência, os procuradores destacam duas reuniões ocorridas na mesma data, em 25 de julho de 2014, nas quais Lula teria se encontrado com Leo Pinheiro e depois com Vaccari, preso pela Operação. O petista nega que tenha tratado sobre o assunto com qualquer um dos dois nesta data.
Também chamou a atenção dos procuradores o fato de que, em 3 de junho de 2014, com a Lava Jato já deflagrada, Lula teria se reunido no mesmo dia com Pinheiro e Sergio Machado, ex-diretor da Transpetro, uma subsidiária da Petrobras. Machado, que assinou acordo de delação premiada, ganhou notoriedade por arrastar boa parte da cúpula peemedebista para o escândalo de corrupção. Segundo Lula, na conversa ele e o diretor falaram sobre modelos de navios e nomes que poderiam ser dados às embarcações para "homenagear personalidades brasileiras históricas". Ele negou que tenha falado sobre a Operação ou sobre o tríplex nos encontros.
Dona Marisa
No depoimento a Moro o ex-presidente afirmou que a ideia de adquirir uma cota no empreendimento - então sob responsabilidade da Cooperativa dos Bancários de São Paulo - foi de sua mulher Marisa Letícia, morta em fevereiro deste ano e que também era alvo desta mesma ação penal. Segundo a narrativa do petista, todos os detalhes envolvendo pagamento das cotas, o interesse e a posterior desistência no imóvel após a OAS assumir a obra foram de Marisa. Lula afirmou que ela visitou o apartamento sem seu conhecimento. O procurador Carlos dos Santos Lima, que participou da audiência de Lula, criticou a "responsabilização" da ex-primeira-dama por parte da defesa do petista. "Infelizmente, as afirmações em relação à dona Marisa a responsabilizando por tudo é um tanto triste de se ver feitas nesse momento até porque, como o ex-presidente disse, ela não está aí para se defender", afirmou. A ação contra Marisa foi extinta.
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