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Ato reúne milhares de argentinos contra sentença favorável a repressores

Após decisão da Corte Suprema, Congresso aprovou lei para impedir que torturadores sejam soltos

Manifestantes erguem lenços brancos, objetos que as Mães e Avós da Praça de Maio usam para simbolizar as fraldas usadas por seus filhos desaparecidos.
Manifestantes erguem lenços brancos, objetos que as Mães e Avós da Praça de Maio usam para simbolizar as fraldas usadas por seus filhos desaparecidos.EITAN ABRAMOVICH (AFP)

A Argentina demonstrou nas ruas e no Congresso Nacional que continua sendo um exemplo mundial em questões de memória histórica. Os anticorpos inoculados na sociedade argentina depois de anos de convívio com os repressores nas ruas, por causa dos indultos de 1991, provocaram uma inédita revolta cívica contra a Corte Suprema e sua decisão que beneficiava condenados por crimes contra a humanidade. Depois de uma inédita mobilização política – que levou o Congresso a aprovar em menos de 24 horas e de forma quase unânime uma lei para impedir que torturadores fossem soltos antes do tempo –, foi a vez das ruas falarem. E dezenas de milhares de pessoas saíram para exigir: “Nunca mais privilégios para os autores de crimes contra a humanidade, nunca mais genocidas soltos”.

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Famílias inteiras com crianças pequenas, e muita gente jovem, deixavam claro que o antídoto passa de geração em geração. Foram à praça de Maio para rejeitar a sentença e recordar que estarão ali sempre que alguém tentar modificar uma política de Estado que fez da Argentina um modelo a seguir e motivo de inveja para muitas vítimas em outros países. Houve gritos contra o Governo, acusado por alguns de estar por trás da sentença – apesar de o próprio presidente Mauricio Macri tê-la rejeitado publicamente após a polêmica –, mas em geral o ambiente era festivo, porque a pressão deu resultado.

A maciça mobilização foi organizada para rejeitar a sentença da Corte Suprema que permite aplicar a mais de 500 repressores da última ditadura militar (1976-83) um benefício chamado “dois por um”, ou seja, que os dias passados em prisão preventiva contem em dobro.

“Felizmente a sociedade reagiu com firmeza. Muitos juízes estão rejeitando os pedidos de habeas corpus para os repressores. Os legisladores aprovaram uma lei que busca frear a aplicação da sentença da Corte Suprema. Isto nos enche de esperança e gratidão. Não estamos sozinhos como em outras épocas”, afirmou Estela Carlotto, líder de Avós da Praça de Maio. “Olê, olá, aonde forem nós iremos procurar”, cantava a praça. Milhares de lenços brancos, iguais aos usados pelas Mães e Avós da Praça de Maio, encheram a espaço como um grande símbolo de apoio a uma luta que acaba de completar 40 anos. A passeata, aliás, terminaria a poucos metros da pirâmide que a cada quinta-feira, desde 1977, é o cenário do protesto dessas mulheres diante da Casa Rosada, a sede do Governo argentino.

As organizações Mães da Praça de Maio – Linha Fundadora, Avós e Familiares de Detidos e Desaparecidos por Razões Políticas, que convocaram a manifestação, foram surpreendidas pela afluência. Segundo os organizadores, havia 400.000 pessoas. A manifestação era enorme, com uma coluna que superava os 500 metros, não em uma, mas em todas as artérias que desembocam na praça. “Senhores juízes, nunca mais nem um só genocida solto”, dizia um cartaz colocado num dos palanques montados na praça.

Pouco antes da marcha, por iniciativa da classe política e especialmente do Governo, o Congresso Nacional sancionou em regime de urgência uma lei que limita os alcances da norma, aprovada pela máxima instância do Judiciário ao analisar o caso do ex-militar Luis Muiña. Com essa manobra, o Executivo de Macri se livra de ser esmagado pela mobilização social contra a sentença.

O movimento social é tamanho que a rejeição à sentença colocou Macri pela primeira vez em sintonia com sua antecessora, Cristina Kirchner. “Sou contra qualquer ferramenta favorável à impunidade, ainda mais quando se trata de crimes contra a humanidade”, afirmou o presidente. Já Kirchner, em visita a Bruxelas, disse: “Com estes três votos, deseja-se fazer a Argentina retroceder a 20 anos atrás em matéria de direitos humanos, depois de chegar a ser exemplo nesta matéria”. O problema agora está nas mãos dos três juízes que tomaram a decisão, dois dos quais nomeados pelo atual Governo, cuja imagem ficou muito abalada, pouco mais de um ano depois da sua posse. As repercussões desse ambiente na própria Corte Suprema ainda são imprevisíveis, pois seu presidente, Ricardo Lorenzetti, ficou em minoria ao rejeitar a sentença.

Tati Almeida, das Mães de Praça de Maio – Linha Fundadora, disse ao EL PAÍS que “ficou demonstrado mais uma vez que o povo unido jamais será vencido. É tão aberrante esta lei ‘dois por um’ que esta Corte Suprema teve a ousadia de ditar, querendo deixar em liberdade os genocidas e seus cúmplices, que a reação não foi só na Argentina, mas também no exterior”. “O Governo percebeu – porque afinal é neste Governo que estas coisas acontecem, desde que Mauricio Macri assumiu os direitos humanos são permanentemente violados –, então compreenderam que era um papelão internacional, e alguns começaram a querer se distanciar”, afirmou. “Que coincidência que a cúpula da Igreja também fale em reconciliação. Jamais. Nem reconciliação nem perdão. Os únicos que poderiam fazer isso são nossos filhos, e eles não estão mais aqui”, concluiu Almeida.

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