PEC do Teto ‘não é uma Brastemp’
Felipe Salto e Monica de Bolle, favoráveis ao teto de gastos, dizem que há problemas no texto aprovado em primeiro turno na Câmara
Os economistas Felipe Salto e Monica de Bolle, favoráveis à PEC 241, a proposta de emenda à Constituição que estabelece um teto de gastos, afirmam que há problemas no texto aprovado em primeiro turno na Câmara, nesta segunda, e argumentam que eles deveriam ser corrigidos antes que o projeto se torne parte da Constituição:
“A PEC do Teto não é uma Brastemp”. A frase é do eminente especialista em contas públicas, referência para todos nós, Raul Velloso.
São numerosos os alertas feitos por economistas e analistas de contas públicas sobre o texto da proposta. É claro que a ideia de controlar o gasto é essencial. O diabo, no entanto, mora nos detalhes. Não adianta aprovar algo geral e esperar que, pela força da gravidade, tudo se resolva. Trata-se de tema delicadíssimo. A sintonia fina, desde já, é crucial.
Vemos quatro problemas da PEC em versão original, e dois novos no texto revisado e aprovado em comissão (agora já aprovado em primeiro turno na Câmara).
É claro que a ideia de controlar o gasto é essencial. O diabo, no entanto, mora nos detalhes.
O primeiro é o prazo. A regra continua a valer por 20 anos, o que não ocorre em lugar algum do mundo. Na maior parte dos países, há combinações de regras diferentes, por períodos menores, podendo haver revisão de tempos em tempos. Fixar uma regra assim é como colocar a política fiscal e o país em piloto automático por período longuíssimo. Por quê?
O segundo ponto está ligado ao primeiro. A PEC está desbalanceada. Tem efeito nulo no curto prazo, já que a inflação do ano anterior – indexador escolhido pelo Governo – estará acima da inflação corrente até que o movimento de declínio e convergência ao centro da meta se consolide. Para o longo prazo, com inflação baixa, dá-se o contrário: a regra produziria um superávit primário (saldo positivo nas contas públicas) estratosférico.
Se o país voltar a crescer, nada mais justo e desejável que a sociedade se beneficie disso, sobretudo com mais e melhores políticas públicas. Não se deve almejar fazer primário por fazer primário. A regra de sustentabilidade da dívida pública mostra que, para um PIB crescendo em torno de 2,5% ao ano, com inflação em torno de 4,5% e juros reais também nesta faixa, o primário exigido para estabilizar uma dívida de 85% do PIB é de 2,0% a 3,0% do PIB. Com 3%, já conseguiríamos, inclusive, imprimir uma tendência de queda do endividamento bruto.
De que serve, então, aprovar regra que produz um primário de quase 6,5% do PIB ao final de 20 anos?
O terceiro problema é a incompatibilidade do teto geral quando confrontado com as regras atualmente vigentes para a correção de diversas rubricas do gasto primário. São pelo menos 14 vinculações ou indexações, que fazem com que 51% da despesa primária tenha vida própria. A Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS), o seguro-desemprego, a educação e a saúde são exemplos de gastos que têm dinâmicas constitucionalmente garantidas e que não conversam com o indexador “inflação do ano passado”. A resposta do Governo a esse problema é que a reforma da Previdência dará conta de livrar o gasto de uma série de amarras e, assim, o teto estará sempre garantido. Lembra um pouco aquela música da Dalva de Oliveira: “Tudo na vida é ilusão…”
O quarto problema tem a ver com as exceções à regra. Gastos com eleições, despesas de capitalização de empresas estatais e créditos extraordinários ficarão de fora. Este último é o item mais preocupante. Em 2016, já foram mais de R$ 10 bilhões com gastos autorizados via créditos extraordinários. Tal montante expressivo ficará de fora?
Mas esses problemas já eram conhecidos. Dois novos e graves problemas apareceram no novo texto da PEC.
O primeiro está nas páginas 64 e 65 do relatório. O texto proíbe a realização dos chamados créditos orçamentários suplementares, mesmo no caso de despesas obrigatórias. Por exemplo, se houver algo imprevisto no número de benefícios previdenciários de um determinado ano e a despesa precisar ser incrementada, isso estará proibido. Sobraria utilizar o tal crédito extraordinário, livre do limite global, que, pelo regramento atual, só pode ser usado em casos de calamidade.
A proibição da realização de despesas adicionais, justificadas e aprovadas pelo Congresso, por meio de créditos suplementares, contraria a lógica do processo orçamentário existente. O Governo quer forçar a aceitação de espécie de orçamento impositivo sem discutir isso com ninguém. O jornalista Ribamar Oliveira identificou esse problema recentemente (ver o Valor Econômico de 6 de outubro). A outra brecha para poder realizar algum gasto adicional será o cancelamento de despesas discricionárias, isto é, dos investimentos.
Se houver superação da estimativa de receita, tudo irá para o superávit primário ou para reduzir o estoque de restos a pagar, não há escolha de política econômica. Para que servirão os Ministérios da Fazenda, do Planejamento, se tudo será automático?
O segundo novo problema é o mais grave de todos. Na lista de sanções previstas no texto final – são oito – o Governo determinou que, em caso de descumprimento do teto, as despesas obrigatórias não poderão sofrer reajuste. O dispositivo abrange, também, o salário mínimo. Pela Constituição, está garantido que o salário mínimo não poderá ter perdas reais. No entanto, a lei que reajusta o mínimo é ordinária: aquela que garante o PIB de dois anos antes mais a inflação, até 2019. Essa lei será atropelada por esse novo regramento.
É possível fazer da PEC do Teto Brastemp verdadeira, a favor do bom financiamento de mais e melhores políticas públicas para todos. Sobretudo para os mais pobres
A verdade é que não se faz política econômica no tapetão. Ou bem se tem um programa fiscal claro, que ataque os nossos problemas centrais, ou morreremos na praia. Há tempo de mudar e de complementar a PEC do Teto, fazendo boas modificações e promovendo uma adequação do texto atual à realidade do País.
Deixamos pelo menos duas contribuições, para além das correções já apontadas, que poderiam ajudar a dar robustez e força política à proposta do Governo. A primeira é a fixação de um limite auxiliar para o gasto com pessoal. Os salários no serviço público têm crescido, nos últimos anos, em ritmo três vezes superior à evolução dos salários no serviço privado. Se não houver um limite claro para o gasto com pessoal, a adoção do teto geral golpeará, sem dúvida alguma, os gastos discricionários. Dito de outra forma, o investimento pagará ainda mais fortemente a conta do ajuste. Irão pelo ralo os 0,7% do PIB que hoje o Governo federal investe.
A segunda proposta é adotar um limite para a dívida da União. Só assim haverá um horizonte bem definido para a política fiscal. A proposta tramita em regime de urgência no plenário do Senado. Trata-se do Projeto de Resolução do Senado (PRS) nº 84, de 2007, cujo texto substitutivo é da lavra do senador licenciado e ministro José Serra. É uma ideia interessante para fechar as brechas da PEC do Teto. Se o país souber qual o nível de dívida que deseja buscar, daqui a quinze ou vinte anos, ele poderá, com tranquilidade e bom planejamento, adotar as ações necessárias para pôr a política fiscal e a economia nos trilhos. Com calma, sim, porque todos sabemos que a dívida/PIB ainda crescerá bastante antes de começar a cair.
Como se vê, há muito por fazer. É possível fazer da PEC do Teto Brastemp verdadeira, a favor do bom financiamento de mais e melhores políticas públicas para todos. Sobretudo para os mais pobres.
Felipe Salto é professor de macroeconomia no Master in Business Economics, na FGV/EESP e coautor do livro “Finanças públicas: da contabilidade criativa ao resgate da credibilidade” (Record, 2016). É assessor do senador José Aníbal (PSDB-SP).
Monica de Bolle é macroeconomista, pesquisadora visitante do Peterson Institute for International Economics, nos Estados Unidos. Ex-economista do FMI, organizou "O Futuro da Indústria no Brasil".
Esse texto foi publicado originalmente no Blog do Salto.
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