O jeito estranho da Fifa de combater o racismo
Decisão da entidade incomodou dirigentes e atletas que creem que ainda há muito por fazer
Mês após mês, a cena muda, mas a ideia se repete. Os atingidos – além dos milhões de torcedores televisivos, inclusive muitas crianças – podem ser humildes mulheres na Plaza Mayor de Madri, um jogador negro (como Iñaki Williams) ou algum coletivo específico, seja um país determinado, os LGTBs ou a polícia. A polêmica voltou a ganhar força nesta semana, quando a FIFA decidiu dissolver a sua Força-Tarefa Contra o Racismo e a Discriminação, criada há apenas três anos, durante o mandato de Joseph Blatter, para impulsionar iniciativas inovadoras na luta contra o racismo no futebol.
Fontes da entidade que comanda o futebol mundial dizem que o grupo havia nascido como um think tank [laboratório de ideias] e que sua tarefa era pensar soluções. Esse processo, prosseguem as fontes, já terminou, e todas as ações concretas estão sendo executadas. Vários membros da Força-Tarefa protestaram contra a medida, incluindo o jogador Yaya Touré, do Manchester City, que atuou como consultor, mas não participou de nenhuma reunião. Os especialistas da FIFA que combatem o problema têm um só objetivo em mente: a Copa do Mundo de 2018, na Rússia.
Ainda nesta quarta-feira, na partida da Champions League entre Rostov (Rússia) e PSV Eindhoven (Holanda), um espectador atirou uma banana em campo. O clube russo, que já havia sido sancionado em 9 de setembro por episódios racistas durante seu jogo de volta contra o Ajax, espera uma nova punição. “Estamos tentando resolver essas situações com a federação russa. É impossível controlar cada pessoa no estádio. Espero que seja um fato isolado e que não volte a se repetir”, disse Alexei Sorokin, membro do comitê organizador da Copa de 2018, à agência TASS.
A Força-Tarefa foi criada em março de 2013, após uma série de incidentes racistas nos estádios. Na ocasião, coros racistas contra Kevin-Prince Boateng, que era jogador do Milan, levaram o atleta a atirar uma bola com força contra a arquibancada e sair de campo com toda a sua equipe. A FIFA achou que era o fundo do poço e, mais uma vez, decidiu agir nessa questão. Advogados, jornalistas, jogadores e outras personalidades compuseram uma equipe encarregada de pensar iniciativas e ações concretas: as principais propostas, que estão agora sendo concretizadas, foram um guia de boas práticas para as federações, a identificação de partidas de alto risco, a nomeação de embaixadores antidiscriminação e um sistema de monitoramento.
As ações concretas da FIFA contra o racismo
Preocupada com a repercussão midiática da dissolução da Força-Tarefa Contra o Racismo e a Discriminação, a FIFA emitiu na manhã desta quinta-feira um comunicado em que lista ações implementadas graças a esse grupo. A entidade diz que a Força Tarefa foi dissolvida porque “já concluiu seu trabalho”.
Estas são as medidas adotadas:
- Sistema de monitoramento para identificar partidas de alto risco e qualquer tipo de incidente racista. É gerido em conjunto com a organização FARE.
- Guia de boas práticas para a diversidade e o combate à discriminação.
- Prêmio FIFA de diversidade.
- Embaixadores da FIFA: lendas do futebol envolvidas no combate ao racismo.
- Várias iniciativas como parte da estratégia de sustentabilidade para a Copa do Mundo de 2018, na Rússia.
- Programa FIFA para o desenvolvimento da liderança feminina.
- Treinamento de árbitros e delegados das partidas para lidar com atos discriminatórios.
- Jornadas de combate à discriminação.
- Campanha “Diga Não ao Racismo”.
- Conferências sobre futebol feminino e liderança em 2015 e 2016 em Zurique.
Como qualquer organização de especialistas e pesquisa, a Força-Tarefa teve muitos meses de inatividade e só se reuniu três vezes, a última em dezembro de 2014, há mais de um ano e meio. Com os escândalos de corrupção que derrubaram Blatter, “as prioridades durante um tempo foram outras”, segundo uma fonte da FIFA. Isso não significou a paralisia total da atividade contra o racismo, mas fez com que a unidade antidiscriminação ficasse num limbo. “Talvez devessem tê-la dissolvido antes”, diz essa fonte. O fim da comissão é um fato pontual, claro, mas a dúvida é outra: por que a FIFA esperou até 2013 para montar uma equipe de especialistas para um tema tão relevante?
“A dissolução da Força-Tarefa foi uma estupidez”, critica o advogado e jornalista esportivo anglo-nigeriano Osasu Obayiuwana, ex-integrante do grupo. Descontente com a decisão da FIFA, afirma que “não há nenhum comitê que faça o que fazíamos”. “Combater o racismo no futebol deveria ser, agora e no futuro, um tema de máxima prioridade”, insiste. Foi Obayiuwana quem deu visibilidade ao assunto na sua conta do Twitter, onde publicou a carta que recebeu comunicando o fim da unidade para a qual trabalhava quase sem remuneração. Quase porque todos os membros do grupo recebiam uma ajuda de custo de 250 dólares (806 reais) quando se reuniam.
“As recomendações da Força-Tarefa se transformaram em uma matéria global”, diz uma fonte da FIFA. Piara Powar é o presidente da entidade FARE (Futebol Contra o Racismo na Europa, na sigla em inglês). "A decisão de fazê-la desaparecer é da FIFA, embora eu não esteja de acordo”, diz. A organização dele assessora a FIFA na luta contra a discriminação, principalmente no monitoramento de partidas e no relato de incidentes através de uma plataforma na Internet. “Com uma Copa do Mundo dentro de pouco tempo, o que mais queremos é que todos possam ir vê-la e se sintam cômodos”, afirma. “Na Rússia, as coisas estão melhorando pouco a pouco, mas ainda estão muito complicadas para o coletivo LGTB. Infelizmente, as demonstrações públicas de afeto para este coletivo serão muito difíceis ali”, observa.
Esse é um dos problemas da FIFA: sua luta contra o racismo se centra somente na Copa do Mundo, nas Eliminatórias e na Copa das Confederações. Todo o resto depende das federações nacionais, e a margem de ação se esgota. “Não trabalhamos diretamente com os governos dos países. É difícil, porque não recebemos nenhuma assistência econômica”, comenta Powar. “Além disso, o panorama está muito difícil devido ao atual estado da relação entre a Rússia e o Ocidente, nesta nova Guerra Fria que estamos vivendo.”
Enquanto a FIFA foca a Rússia, vários episódios racistas em diversos estádios do mundo continuam enchendo as páginas dos jornais. A seleção chilena foi punida por gritos homofóbicos nas arquibancadas durante um jogo das Eliminatórias, a torcida do Sporting de Gijón (Espanha) causou a suspensão de uma partida por imitar sons de macacos cada vez que Iñaki Williams, do Athletic de Bilbao, tocava na bola, e assim por diante. Já é normal que os jogos parem, mas as sanções econômicas (as mais altas chegam apenas a 72.000 reais) são irrisórias para clubes que gastam centenas de milhões de euros em contratações.
A Kick It Out é uma organização britânica que combate os comportamentos racistas no futebol inglês. O Campeonato Inglês é o mais importante torneio nacional do mundo, pelo menos em termos econômicos e televisivos, e uma vitrine para o comportamento de torcedores e jogadores. Segundo a Kick It Out e a federação inglesa, houve mais de 900 incidentes de discriminação na última temporada (2015-2016). As situações de racismo foram a maioria (59%), mas também ocorreram agressões por orientação sexual (13%), nacionalidade (17%), gênero (9%), crenças religiosas (6%) e deficiência (4%).
No último mês de 2015, no sistema de monitoramento do FARE, a plataforma que assessora a FIFA, registra incidências na Romênia, México, Peru, Portugal, Croácia, Inglaterra, Itália, Colômbia, Escócia e Turquia. O problema, portanto, não se limita à Rússia e, acima de tudo, não começou em 2013.
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