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Bolt mais lento é, ainda assim, o melhor dos 100m

Jamaicano conquista o terceiro título olímpico na prova mais rápida do atletismo, superando Gatlin

Carlos Arribas
Bolt, no final dos 100m.
Bolt, no final dos 100m.JEWEL SAMAD (AFP)

No calor do Engenhão, ouviu-se o ruído de um helicóptero. Em seguida, um tiro de festim. A torcida, já embriagada por uma noite inesquecível no atletismo, começou a rugir. Pouco menos de 10s depois, ia ao delírio. Havia assistido àquilo que todos esperavam, a consagração de Usain Bolt, seu ídolo. Com uma marca de 9s81 (vento a favor de 0,2 metro por segundo, desprezível), o jamaicano ganhou a prova mais rápida, a mais vista, a mais esperada dos Jogos Olímpicos.

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Nunca Bolt havia corrido tão devagar para conquistar um título olímpico. Nunca havia sido tão Bolt quanto na calorosa noite carioca de domingo, quando conquistou o maior objetivo da sua carreira: o terceiro ouro olímpico consecutivo nos 100m, algo inédito na história – e apenas meia hora depois de seu amigo Wayde van Niekerk bater o recorde mais respeitado da velocidade, o de Michael Johnson nos 400m rasos. Eis a contradição maior do personagem que chegou ao olimpismo para ser eternamente recordado. Para ser Bolt não é preciso correr cada vez mais rápido. Basta demonstrar sempre que é invencível. Em Pequim 2008, Bolt ganhou seu primeiro ouro olímpico com 9s63, a final em que relaxou depois de 60 metros para comemorar a sua vitória; em Londres fez 9s69. Para ganhar seu primeiro Mundial, em Berlim, estabeleceu um recorde mundial que muita gente seguramente não viverá para ver ser quebrado: 9s58. No Mundial de 2013 em Moscou, seu segundo, limitou-se a correr em 9s77, e para ganhar o terceiro, em Pequim 2015, só precisou correr um centésimo mais rápido do que Justin Gatlin, 9s79. O terceiro ouro olímpico na prova rainha do atletismo veio com um tempo de 9s81, oito centésimos à frente de Gatlin, sua sombra, e um décimo mais veloz que canadense Andre de Grasse, que completou o pódio com os dois protagonistas da corrida de um ano atrás em Pequim.

“Alguém disse certa vez que eu posso me tornar imortal. Mais duas medalhas e assino embaixo: imortal”, disse Bolt, como que ditando seu epitáfio, depois do curioso duelo contra o arquirrival Gatlin – que entrou na pista sob uma intensa vaia procedente das lotadas arquibancadas do Engenhão. Gatlin largou como sempre, feito uma bomba, e obrigou Bolt a uma recuperação tremenda, quase angustiante, que culminou com um sorriso de alívio e um polegar que batia no próprio peito, como que dizendo: “Este sou eu, Usain Bolt, não há ninguém igual”. Depois, afirmaria: “Sempre haverá quem duvide. Mas não se enganem, estou em melhor forma do que no ano passado.”

O olhar de Bolt durante a ultrapassagem era a de um motorista que vê o seu carro no limite e um caminhão vindo para cima. Aos 70 metros, o jamaicano virou o pescoço para a esquerda e comprovou que havia superado o obstáculo. Num piscar de olhos – o que, segundo dizem, dura mais ou menos um milésimo de segundo – a angústia sumiu do seu rosto tão expressivo. Um sorriso radiante substituiu a aflição, com a mesma clareza com que um desenhista plasma, com um traço do lápis, todas as expressões do rosto humano sobre um círculo em branco. Bolt, nesses momentos de esforço físico extremo, é um personagem de quadrinhos, com longas pernas e olhos enormes, que parecem sempre preparados para uma surpresa.

Apesar do entusiasmo invasivo do público, a comemoração desse título que lhe tira um peso das costas foi a mais serena de todas, a mais religiosa, digamos, sempre dentro da loucura de Bolt. Contribuiu para isso, talvez, a expressão compungida com que Gatlin, o campeão olímpico de Atenas 2004, precisou celebrar sua prata, enrolado na bandeira das listras e estrelas, mas com medo de mais vaias que o recordassem da suspensão por doping que sofreu há alguns anos. Na televisão, Gatlin limitou-se a dedicar a medalha ao filho. “Se por acaso estiver me vendo, te amo.”

“Fiquei surpreso com as vaias a Gatlin”, disse Bolt, que parece constantemente imune às suspeitas que mancham todos os que conseguem um feito extraordinário no atletismo. “É a primeira vez que as escuto num estádio.”

A Olimpíada do Rio é certamente a última de Bolt, que completa 30 anos no próximo domingo, dia do encerramento. “Não estarei em Tóquio 2020”, anunciou no começo da coletiva. Mas seu trabalho de ourives ainda terá duas joias a oferecer: a busca pelos títulos dos 200m rasos e do revezamento 4x100. Poderá então se aposentar e desfrutar da sua fortuna (calcula-se que ganhe mais de 100 milhões de reais por ano, no mesmo nível que Messi e Cristiano Ronaldo). Se vencer as provas que falta, deixará como marca um triplo-triplo: três ouros em três provas, repetindo-se em três Olimpíadas. O que ninguém jamais conseguiu. E talvez jamais consiga.

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