Rio ganha primeiro ouro para o Brasil
Maracanã recebeu uma festa popular e homenageou o maratonista Vanderlei Cordeiro
Aquele abraço, de Gilberto Gil, a canção do exílio, invadiu o Maracanã. Foi uma declaração pujante, logo de entrada, de que a voz da cerimônia de abertura dos Jogos do Rio seria a do povo brasileiro e suas criações, sua música revolucionária e sua arte, e não a do poder político, tão controverso como o presidente interino do Brasil, Michel Temer, sempre em segundo plano e receoso de uma vaia da arquibancada, que espera o desfecho do impeachment de Dilma Roussef, a grande ausente do palco olímpico. Foi uma forma valente de marcar, com personalidade e firmeza, o caminho de mudança para Tomas Bach, o presidente do Comitê Olímpico Internacional (COI), que lida com a crise do caso de doping russo e com sua quase inevitável tendência de buscar o lucro dos Jogos às custas de países em grave crise, como o Brasil. Bach está à beira de um precipício o qual só pode saltar se transformando e reconhecendo a voz do povo que o guie. Apesar de toda a intenção de ruptura da jornada, o tédio final foi inevitável pela complicada tarefa de integrar o interminável desfile de esportistas em uma ação criativa que durou mais de três horas.
A simbologia temerária inicial, com a visão tenebrosa do Cristo Redentor banhado de verde e amarelo, as cores da bandeira da Ordem e do Progresso, foi rapidamente suplantada por um espetáculo íntimo, ainda que celebrado em um palco gigantesco, o Maracanã, o estádio do drama da Copa do Mundo de 1950. O espetáculo, capaz de converter o hino do Brasil quase em uma canção de protesto interpretada na voz íntima de Paulinho da Viola, um pequeno deus do violão, afastou dos Jogos o tradicional tom triunfalista, de loucura festiva sem sentido ao estilo do Eurovisión. Consequentes com a suave e curta montagem de entrada, uma celebração do melhor que o Brasil deu ao mundo, a música nascida sempre das classes populares, o desfile das nações participantes lideradas por seu melhor esportista porta-bandeira se livrou de tudo que poderia aproximá-lo dos habituais simulacros de desfiles militares para transformar o Maracanã em um sambódromo pelo qual os atletas passeavam como grupos de amigos no Carnaval, fantasiados com seus uniformes, dançando, alterando as filas e a ordem. Levavam uma semente de árvore, de 207 espécies diferentes, tantas quanto os países participantes, que depois serão transplantadas a um parque. Guiando-os em triciclos estavam voluntários, cinco deles mulheres transsexuais, outro gesto pela igualdade e a inclusão. Entre elas se destacou a modelo Leia T, filha do ex-jogador Toninho Cerezo. As folhas de pau brasil, a árvore de onde os portugueses extraíam a tinta vermelha que deu nome ao país, substituíram, simples, naturais, as extravagâncias do poderio tecnológico que guiou outras cerimônias.
Antes deles desfilou a musa Gisele Bündchen, ao som da Garota de Ipanema que Daniel Jobim, o neto de Tom Jobim, lhe tocava ao piano: as curvas da Bossa Nova sobre as curvas da arquitetura de Oscar Niemeyer.
Em 2012, na cerimônia de abertura dos Jogos de Londres, o Reino Unido mostrou seu orgulho e sua história imperial partindo de sua grande contribuição à história, a revolução industrial que abriu passo ao capitalismo. No Rio, o diretor e ideólogo do espetáculo, o diretor Fernando Meirelles do magnífico Cidade de Deus, contou a história do Brasil: os povos indígenas e suas selvas insondáveis, a descoberta e conquista portuguesas, o uso dos bosques e sua destruição, a exploração escravocrata de quatro séculos, a revolução urbana, a necessidade de regressar à floresta e reconstruir a selva amazônica para sobreviver, tudo através de suas músicas populares, da Bossa Nova sensual, da Construção mais geométrica de Chico Buarque, o passinho, a voz das favelas, o samba de Elza Soares, o rap de Karol Conka, o maracatu de Pernambuco, para confluir todos no País Tropical cantado por Jorge Ben Jor. Cambaleante, decolou e saiu pelo teto do estádio o 14 Bis de Santos Dumont, o inventor da aviação mundial faz 110 anos.
Vanderlei Cordeiro de Lima acende a pira
"Espero que a cerimônia seja um remédio para a depressão de meu país", disse Meirelles. "Outros falaram deles, do que fizeram pelo mundo. O Brasil quis falar do futuro, do que todos juntos podemos fazer pelo planeta". E para reforçar a mensagem, o final da festa foi uma visão poética da necessidade da ecologia, uma poesia, A flor e a náusea, de Carlos Drummond de Andrade, recitada em português e inglês pelas atrizes Fernanda Montenegro e Judi Dench, tremendas e profundas acompanhadas de imagens de um simulacro de como a água sepultará Amsterdã, a Flórida, as ilhas Maldivas, se o aquecimento global não for detido. Mais de 3 bilhões de pessoas, disseram os organizadores, viram tudo pela televisão em todo o mundo.
A festa acabou com a poesia e a transcendência da microbiologia como religião de futuro, antes que viessem os russos mal-amados, os admirados refugiados, o ceremonial, os discursos, as vaias a Temer ao declarar abertos os Jogos e os rituais da bandeira olímpica, o juramento olímpico, a pomba da paz e a chama roubada por Prometeu que chegou às mãos de Vanderlei Cordeiro de Lima, o maratonista brasileiro atacado por um clérigo louco quando estava prestes a se proclamar campeão olímpico em Atenas. Cordeiro encontrou consolo da glória roubada, 12 anos mais tarde, portando a tocha pela escada até à pia onde brilhará, purificadora, nos próximos 17 dias no Rio, pairando sobre os melhores esportistas, os mais motivados, os entregues a um sonho, como ele foi.
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