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A obrigação de serem ‘puras’

No Marrocos, a preferência dos homens por esposas virgens transformou a reconstituição do hímen em prática comum

Francisco Peregil
Mulheres trajando o niqab em Rabat (Marrocos), em maio de 2014.
Mulheres trajando o niqab em Rabat (Marrocos), em maio de 2014.Fadel Senna (AFP)

O doutor Mansur começou a trabalhar em 1988 no pronto-socorro do hospital da Maternité Universitaire Souissi, em Rabat. “Havia pelo menos quatro casos por semana de mulheres estupradas, muitas delas menores de idade”, conta ele. “Percebi que talvez elas pudessem até ganhar a batalha contra seus agressores no plano jurídico, mas que a batalha social já estava perdida. Nunca poderiam se casar. E que o repúdio não se dirigia apenas a elas, mas também a suas famílias. Para remediar isso, comecei a fazer, em 2000, as primeiras reconstituições de hímen”.

O Bladi, um site marroquino, publicou em 2008 que as reconstituições se tornaram rotineiras. O Yabiladi, outro veículo de comunicação, alertou em 2012 que essa prática já não era segredo para ninguém. E deu voz a muitos homens e mulheres que tacharam de hipócrita a operação. “É preciso assumir as escolhas e os atos”, declarou uma mulher na reportagem. “Até mesmo para aquelas que perderam seu hímen em um acidente, em um estupro e de forma involuntária. Eu penso que a verdade tem mais honra do que essa enganação”.

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O fato de que exista muita gente que pense dessa forma é o que faz com que os profissionais que a praticam, mesmo que seja um exercício legal, prefiram se manter no anonimato. O doutor Mansur, que pede para que não seja revelado seu verdadeiro nome, abandonou em 2013 a Maternité Universitaire Souissi e começou a trabalhar por conta própria. Calcula que operou no total mais de 500 mulheres. A evolução dos anos pode talvez ter influenciado no aumento de relações pré-matrimoniais, mas não enfraqueceu o anseio pela esposa virgem. Agora são dezenas de ginecologistas e cirurgiões plásticos que realizam a himenoplastia em Rabat, Casablanca, Marrakesh, Tetuan, Tânger e também em Ceuta e Melilla. “Muitos se aproveitam da vulnerabilidade dessas mulheres para cobrar até 1.000 euros (3.600 reais), preços realmente abusivos, quando é possível fazer a operação a partir de 200 (720 reais)”, diz Mansur.

O doutor se lamenta pela vigência do machismo. “O homem que se apresenta a sua futura esposa se gaba da grande experiência que teve com outras mulheres. Mas se ela confessa que conheceu outro homem, mesmo que só por telefone, é abandonada na hora. ‘Tocada uma vez, tocada todas as vezes’, costumam dizer. Querem suas noivas embaladas em plástico, como se fossem um objeto novo”.Saida Drissi, vice-presidenta da Associação Democrática das Mulheres do Marrocos, conhece uma mulher que fez a operação. “Isso se transformou entre nós em algo que nunca aconteceu, nunca voltamos a falar sobre o assunto”, afirma. “Esta é uma sociedade muito hipócrita. Existem homens modernos e estudados, mas na hora de se casar, a questão da virgindade é sagrada; sempre querem uma virgem”, explica Drissi.

Existem operações provisórias e definitivas. “As provisórias”, explica o doutor Mansur, “costumam valer por 15 dias. E custam por volta de 200 euros (720 reais), enquanto as definitivas saem por 500 (1.800 reais). Mas muitos maridos sabem que as operações existem. E antes de manterem relações sexuais decidem esperar mais de duas semanas, já casados, para assegurarem-se de que ao fazer sexo a reconstituição do hímen já terá perdido a validade caso tenha sido feita uma operação provisória”.

Em abril, uma agente da polícia marroquina em Casablanca foi processada por roubar joias de uma mulher detida em sua delegacia. O motivo alegado foi que pretendia pagar uma operação de reconstituição do hímen antes de seu casamento. Em Casablanca existe um cirurgião plástico chamado Kamal Iraquiano cuja clínica foi citada em dezenas de fóruns na Internet. O Iraquiano não quis dar nenhuma declaração ao EL PAÍS. “Está tudo na Internet”, disse. De fato, existem centenas de fóruns com dezenas de perguntas e respostas.Muitos homens vão com suas noivas ao ginecologista para pedir um certificado de virgindade da mulher. “O certificado não tem valor jurídico, mas é uma prática muito comum no Marrocos”, diz o doutor Mansur. “Eu o entrego em um envelope lacrado e sempre à mulher que me pede, nunca ao homem”.

A vice-presidenta da Associação Democrática das Mulheres do Marrocos explica que diante da pressão da sociedade algumas mulheres sempre encontraram a maneira astuta de salvar sua honra. “No Marrocos acreditou-se durante muito tempo na lenda do garoto adormecido”, diz Drissi. “O marido que se ausentava de casa durante muito tempo e encontrava sua mulher grávida ao voltar recebia essa explicação: ‘quando você foi embora o bebê dormiu. E despertou quando você voltou”.

As reconstituições de hímen são, para o doutor Mansur, uma passagem simples, rápida e barata rumo à liberdade da mulher. “Antes eram feitas com anestesia geral, mas agora é local. Em meia hora já têm sua vida resolvida. E em 90% dos casos a operação funciona”. Após três semanas de cicatrização, tudo está pronto para a noite de núpcias.

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