A agenda urbana
Acabou o pacto entre o Estado brasileiro e o concreto armado
O manifesto público da empresa Andrade Gutierrez nos principais jornais do país é documento simbólico do início do fim do longo ciclo iniciado com a construção de Brasília, no qual a ideia de nação moderna, rica e potente, gestada nas entranhas do Estado, teve como parceiro as empreiteiras nacionais, que terminaram tornando-se "muito grandes para acabar” (assim como os principais bancos norte-americanos após a crise de 2008).
Neste documento a empresa assumiu responsabilidades sobre erros cometidos e afirmou compromisso com práticas éticas, e com adoção do projeto executivo completo, uma das origens dos problemas.
A ditadura militar aprofundou as relações entre governo e empreiteiras, esclarecidas soberbamente no livro “Estranhas Catedrais” de Pedro Henrique Pedreira Campos, não apenas como sistêmicas relações econômicas de trocas escusas mas como uma unidade político-social.
A luta pelas Diretas Já ocupou espaços públicos e criou emblemáticas imagens de cidadania com a população na Candelária, no Rio, ou na Praça da Sé, em São Paulo, e mesmo tendo sido frustrada nos seus objetivos, inaugurou um ciclo de otimismo político e que trouxe também inspirações para o urbanismo brasileiro. Havia o sonho de uma agenda urbana nova.
O processo de redemocratização foi marcado pelo desejo de melhores cidades, de participação e curiosamente de anseio por centro urbanos revitalizados, com mais moradia, com espaço público para pedestres e com o patrimônio cultural reabilitado. Deste modo, a reconstrução política e da esfera pública significava também revitalização dos espaços urbanos centrais onde a população havia reunido-se para clamar por seus direitos.
O Rio de Janeiro criou o programa Corredor Cultural, preservando, reconquistando a paisagem urbana histórica e remodelando espaços públicos, liderado pelo urbanista servidor público Augusto Ivan Freitas Pinheiro. A restauração do Paço Imperial na Praça XV carioca era outro marco da retomada do Centro do Rio. São Paulo faz a urbanização do Vale do Anhangabaú, após concurso nacional que selecionou projeto dos arquitetos Jorge Wilheim, Jamil Kfoury e Rosa Grena Kliass. A prefeitura de Salvador convida Lina Bo Bardi, Marcelo Ferraz e Marcelo Suzuki para elaborar um plano de recuperação do Centro Histórico. Curitiba, que desde os anos 70, graças ao urbanista-político-prefeito Jaime Lerner, mas especialmente a partir dos anos 80, consegue aprofundar e estruturar prática respeitável de planejamento urbano integrado.
Mais de 30 anos depois todas estas centralidades históricas são ainda ambientes urbanos frágeis e insustentáveis. São vazios, com pouquíssima ocupação residencial, com patrimônios abandonados (como poderemos ter turismo sério com prédios magníficos em ruínas?) e com espaço público deteriorado pela informalidade e sem consideração com o pedestre.
Desde a redemocratização, fomos vitoriosos na agenda econômica, criando uma moeda forte e estabilizando as finanças públicas, e solidificando aí um nova institucionalidade, a ponto de, quando foi ameaçada, como agora, acabar levando a presidente da República ao impedimento. Estas conquistas não foram perfeitas, muito há ainda por fazer, mas há senso comum de que este é um valor coletivo fundamental.
A agenda social foi também enfrentada e equacionada. Milhões foram incluídos, surge uma nova classe média ascendente e novos parâmetros sociais e até culturais são estabelecidos no país: a diversidade, o acesso a bens de consumo mas também a serviços públicos, o salto educacional. Estes feitos também não foram absolutos. Muito é necessário ainda. Mas do mesmo modo há compreensão clara que esta agenda não pode mais retroagir e que é a base dos anseios da sociedade, e mesmo políticos de linha retrógrada ao assumirem, como agora, afirmam compromisso com o social. Este é um legado inquestionável.
Acontece que em 2013 descobrimos da maneira mais dura que nossas cidades continuavam ruins como estavam durante a redemocratização, quando, após os longos anos 70, foram vitimadas por políticas urbanas autoritárias, destruidoras do espaço público, do patrimônio, plenas em lugares de exceção, com a explosão demográfica trazida pelo “Brasil Grande” aumentando significativamente a informalidade territorial em um cenário de absoluta ausência de políticas habitacionais (que perdura até hoje). Vimos, ao longo dos 70, o domínio absoluto do carro como cânone das dimensões urbanas, dando ao pedestre um papel passivo e servil.
Pois em 2013 descobrimos que a agenda urbana era prioritária, com as pessoas novamente ocupando os centros históricos e exigindo serviços públicos e cidades com padrão “FIFA”.
Percebemos que o urbanismo brasileiro continuava a perder de 7 x 1.
O que aconteceu entre 1984 e 2013 que não conseguimos implementar cidades melhores?
Mesmo vencendo as partidas contra os problemas econômico e social, que puderam ser trabalhadas dentro do tempo de mandatos políticos, o território urbano demanda mais tempo e planejamento para alcançar resultados.
Dotar as cidades de infraestrutura de mobilidade eficiente, baseada em transporte público de alta capacidade, e com qualidade, é por exemplo, um investimento contínuo, que precisa perdurar por distintas administrações, e envolver diferentes partidos políticos.
As políticas habitacionais são uma vergonha nacional, tanto pela ausência de modelos que garantam acesso a cidade, como para que possam lidar com a variedade social que temos. Se o ciclo da agenda econômica melhorou as condições de financiamento e crédito, e o ciclo social aumentou consideravelmente o acesso para a nova demanda, por outro lado não houve combate à informalidade, não houve urbanização de favelas e não houve ocupação residencial dos centros urbanos. O Minha Casa Minha Vida é a pá de cal da capacidade do governo federal de entender a crise urbana brasileira pois é uma programa segregador e anti-urbano.
O fato é que tanto PSDB, quanto PT, repetiram o sonho de JK, e mantiveram as mesmas alianças entre governos e empreiteiras que a ditadura militar gestou e pariu, pois ambos, de direita e de esquerda, são filhotes da concepção de um Brasil modernista, grande, desenvolvimentista, onde o interesse público que precisa ser materializado através de planos urbanísticos de longo prazo acaba sendo posto de lado em visões pragmáticas de administrações de 4 anos, incapazes que foram, e são, estes partidos de firmar pontos comuns do interesse público para a agenda urbana.
Não há clareza que esta condição mude. Este ano com eleições municipais corremos o risco dos debates ficarem circunscritos às questões da política nacional e o olhar necessário sobre como realizar e entregar melhores cidades tanto para a geração de 84 quanto para a de 2013 poderá não ocorrer.
A agenda urbana é a mais prioritária para o Brasil que adentra o século XXI com seus legados impressionantes na área econômica e social, mas só realizaremos isso com prefeitos mais competentes e capazes politicamente de comprometer-se com o verdadeiro interesse público de planos urbanos que extrapolem o tempo de suas administrações, entregando para a sociedade além de obras, metas, e provando ao setor privado que esta prática, além de lhe ser mais conveniente, é também mais ética. Precisaremos também de presidentes que acolham a agenda urbana como prioridade nacional e que trabalhem próximos dos prefeitos, pois sabemos que ninguém vive na União ou no Estado, vivemos nas cidades, e são nelas que estão as novas riquezas que precisam ser compartilhadas.
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