Memórias de Itamar Franco, o nome mais lembrado na transição para Temer
O vice da transição depois de Collor sobreviveu à crise dos anos 90 Itamar deu as bases para um projeto essencial ao país: o plano Real
Num momento em que os sobressaltos se tornaram rotina diante do segundo impeachment da jovem democracia no Brasil, o país busca referências para assimilar a transição de poder de Dilma Rousseff para Michel Temer, depois do afastamento da presidenta ter sido aceito no Senado. Desde que essa realidade começou a ser aventada há um mês, o nome de Itamar Franco (1930-2011), que sucedeu a Fernando Collor depois da sua destituição em 1992, voltou à baila nos debates políticos. O presidente interino Michel Temer também assume o Executivo depois de um processo de destituição presidencial. Logo, seus passos começam a ser comparados com o de Itamar. O político nascido em Juiz de Fora (MG) que chegou ao Planalto em 1990, como vice do ex-presidente Collor, assumiu a presidência contra as expectativas de todos – e a sua, inclusive. Simples e efetivo, Itamar foi breve para o Brasil, mas muitos o veem como, um dos presidentes mais eficazes da redemocratização do país, fundamental para o que o país é hoje.
A trajetória de Itamar Franco é marcada pela simplicidade, mas também por outra característica essencial à vida política: reagir com rapidez e sobriedade às surpresas no caminho. Mesmo descontadas as distâncias que separam o Brasil de antes e o de hoje e também as personalidades de ambos os políticos, o presidente Temer teria muito do que se beneficiar observando os passos de seu par.
Em dois anos e dois meses de um mandato, o principal feito de Itamar foi manter a unidade política necessária para conduzir uma solução da magnitude do Plano Real – resposta efetiva à hiperinflação daquela época. A inflação era um problema constante da vida nacional, que mantinha o Brasil num círculo vicioso na economia há mais de século. O plano Real veio pavimentar o caminho para a estabilidade econômica de que o país goza até hoje, e que permitiu ao país mudar de patamar nos anos seguintes. A personalidade de Itamar ajudou, asseguram seus amigos. A modéstia, por exemplo, sempre foi sua principal aliada, garante Henrique Hargreaves – seu escudeiro desde tempos memoriais e ministro da Casa Civil naquela fase de transição. Ao contrário de Temer, com planos de governo e nomes ministeriais que começaram a circular publicamente mesmo antes da Câmara dos Deputados votar a favor do impeachment de Dilma, até o último momento Itamar não tinha certeza se seria mesmo presidente. “Itamar não esperava que fosse assumir, foi pego de surpresa”, ressalta Hargreaves, também de Juiz de Fora. Mesmo assim, soube reagir.
“Logo que assumiu, Itamar não tinha equipe, nada. Então, a primeira coisa que fez foi reunir todos os partidos políticos representados no Congresso, grandes ou pequenos, na Alvorada. E falou: ‘Não vim pedir o apoio de ninguém, mas quero garantia de governabilidade. Se houver, tudo bem. Caso contrário, renuncio e convoco eleições”. Temendo piores cenários do que aquele que se desenhava com o mineiro, os vários representantes partidários concordaram que era preciso colocar o país de volta aos trilhos. “Depois, quem quis apoiar, apoiou, e quem optou por fazer oposição, fez. Mas era possível governar”, relata Hargreaves. Para muitos, essa era a postura esperada de alguém que vinha substituir um presidente afastado do poder por causa de escândalos de corrupção.
No contexto do atual desgaste, em que Temer recebeu das mãos de Dilma um Executivo que desde as eleições presidenciais, em 2014, esteve arrinconado, governabilidade é a primeira necessidade que o novo presidente parece já ter alcançado. Hargreaves, apesar de ser crítico ao processo de destituição conduzido, a seu ver, “com uma conotação partidária muito forte”, acredita que sim. “Michel Temer não é um político amador. Ele já foi presidente da Câmara e sabe que, neste país, sem ter uma boa relação com o Congresso, não se governa”, opina. Para ele, Collor e Dilma têm um ponto em comum, que contribuiu para sua destituição: “caíram porque foram arrogantes com o Congresso”.
Itamar tinha como tarefa maior, ao ser empossado por definitivo, em 1993, compor ministérios de sua confiança e, mais que isso, capazes de reorganizar a casa. “Collor tinha juntado vários ministérios importantes em um. Achamos por bem desmembrá-los de novo. Depois, separamos as pastas absolutamente incompatíveis com indicação política, como Economia, Defesa, Previdência... E buscamos os especialistas em cada área, independentemente do partido. Tanto é que dois deles, Paulo Cícero [Minas e Energia] e Hugo Napoleão (Comunicações), eram da oposição, mas foram nomeados”, relembra Henrique Hargreaves.
"Neste país, sem ter uma boa relação com o Congresso, não se governa"
Para muitos, o ministério da Fazenda é um exemplo da determinação de Itamar em fazer a máquina funcionar. Seis ministros passaram pela pasta, entre eles Fernando Henrique Cardoso e Rubens Ricupero – os principais envolvidos na efetivação do Plano Real –, até que o projeto econômico que ele tinha em vista para o país engrenasse. “O grande feito de Itamar foi combater efetivamente a inflação. Porém, naquela época, a agenda econômica era óbvia, hoje é muito mais complexa”, opina Celso Amorim, ex-ministro das Relações Exteriores do Governo Itamar de 1993 a 1995 (e voltou a ocupar o cargo sob Lula, de 2003 a 2010). Por esse motivo, Temer precisará de doses ainda maiores de firmeza e foco nas prioridades para que o país volte a crescer, avaliam observadores.
Na visão do ex-chanceler, outra carta da esfera socioeconômica que não estava sobre a mesa, mas que agora está, era a pressão das bases: “Com a recessão econômica, a tendência é que os movimentos sociais se tornem mais rigorosos. A presença do PT no Governo (Lula e Dilma) amortecia isso”. Segundo Amorim, Itamar pensava “nas mensalidades e nos aluguéis” e conseguiu bom diálogo com as ruas nesse sentido. Temer, por hora, ainda daria sinais difusos de sensibilidade social, sobretudo ao se analisar o conteúdo da Ponte para o Futuro – documento em que seu partido estabelece os planos de administração nacional e que muitos criticam por ser muito direcionado ao mercado.
Era comum escutar de Itamar – que viveu seus últimos anos amargurado por ter ficado à margem da vida política depois de sair da presidência e posteriormente do governo de Minas Gerais – que ele não se importava com as críticas. E elas não foram poucas, da burla em relação ao resgate do Fusca, que a indústria automotiva resgatou por sua sugestão, à invenção dos remédios genéricos, passando pelo Plano Real, cujos louros fazem parte da mística criada ao redor de FHC. Só nos dias atuais, em que um cenário político como o atual era impensável para a maioria, é que a História parece ficar do seu lado. Em Juiz de Fora, o antes ínfimo Instituto Itamar Franco, cujo aluguel era pago pelo próprio para manter um acervo de discursos, fotos e vídeos de sua trajetória política, foi ampliado no fim de 2015 e virou um Memorial da República aberto ao público, com exposições e salas de pesquisa. Talvez muitos brasileiros decidam passar por lá a partir de agora.
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