O país do vale tudo
Democracia é a convergência das divergências – não no Brasil, onde parece não haver campo para o diálogo
Sempre me foi difícil compreender o sucesso que o antigo vale tudo, agora renomeado MMA (Artes Marciais Mistas), faz no Brasil. Uma luta quase sem regras, onde não há sequer a intenção de divertimento (embora, pessoalmente, não consiga pensar em entretenimento vendo homens e mulheres se espancando), mas apenas o desejo de ver os lutadores se ferirem ao máximo, até que um deles saia do ringue vencedor. E, no caso, vencer significa submeter o outro, humilhá-lo, mostrar ao público superioridade sob o argumento da violência extrema...
Há pouco, acompanhado do escritor Reinaldo Moraes, caminhava pela Praça da Sé, coração da cidade de São Paulo, uma região devastada pelo crack. Ali encontram-se seres estendidos no fundo do poço da miséria humana, zumbis que se deslocam de um lado a outro sem sentido, envelhecidos pela droga, invisíveis, desesperançados, aguardando, como animais acuados, a morte. Ziguezagueamos por entre os chamados “nóias”, alerta aos batedores de carteiras, esbarrando em turistas de visita à Catedral Metropolitana e trabalhadores e trabalhadoras que se deslocavam apressados rumo ao metrô. Até que nos deparamos com um pastor de alguma denominação neopentecostal.
Baixo e gordo, ele ocupava o centro de um quadrado delimitado por linhas brancas pintadas nas pedras portuguesas. Às suas costas, dois auxiliares, exibindo enormes Bíblias, recitavam versículos que o outro, carismático e eloquente, interpretava em altos brados, a voz rouca sobrepondo-se ao enorme barulho do lugar. Um público pequeno, mas atento, reconstituía-se a cada intervalo da pregação. Resolvemos nos aproximar para ouvir o discurso. E as palavras que ele proferia, com entusiasmo e convicção, eram de ódio contra homossexuais e prostitutas, de submissão das mulheres, de segregação e fanatismo. Tudo em nome de um Deus, do Deus dele, da igreja dele...
Em 1970, os católicos alcançavam 92% da população – hoje, segundo dados do IBGE referentes ao censo de 2010, eles representam 65% dos brasileiros, enquanto os evangélicos (colocados no mesmo balaio protestantes históricos, pentecostais e neopentecostais) já são 22% do total. O crescimento do fundamentalismo (incluídos tanto sectários não católicos quanto católicos, que existem e são muitos) se dá pela mesma razão que nos extasiamos ao assistir os espetáculos dos novos gladiadores da UFC na televisão: porque somos um país caracterizado pela intolerância, não admitimos divergências, desejamos aniquilar aquele que pensa diferente de nós.
Por muitas e muitas décadas fomos, na superfície, um país tropical “abençoado por Deus e bonito por natureza”, como cantou um dia Jorge Ben Jor. Na profundeza, no entanto, nunca deixamos de ser bandeirantes brutalizados caçando e matando índios nas matas, feitores açoitando negros, senhores oprimindo as mulheres, ricos depreciando pobres, poderosos escarnecendo dos humildes. Não à toa temos um dos piores índices de educação formal do mundo: interessa aos governantes – quaisquer que eles sejam – manter a população acossada para melhor desfrutar das infinitas possibilidades de benefícios (muitas vezes obscuros) oferecidas pelos cargos públicos.
Nunca deixamos de ser bandeirantes brutalizados caçando e matando índios nas matas, feitores açoitando negros, ricos depreciando pobres...
A intolerância agora ocupa lugar privilegiado no espaço virtual das redes sociais. Detratores da presidente Dilma Rousseff e do PT de forma geral expõem seus preconceitos e animosidades – assim como os seguidores fanatizados do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Democracia é a convergência das divergências – não no Brasil, onde parece não haver campo para o diálogo. Ambos os lados se digladiam, vociferam, esperneiam, mentem e manipulam alimentando o ódio como o pastor da Praça da Sé, se machucam e humilham uns aos outros como os lutadores da UFC... Todos se sentem donos da razão – e no fundo ninguém está pensando racionalmente...
Luiz Rufatto é escritor e jornalista.
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