Sobre o que estamos falando mesmo?
Condenar Lula por antecipação é alimentar o ódio que parte da elite brasileira sempre demonstrou em relação ao PT. Mas, tão grave quanto demonizá-lo é inocentá-lo previamente
Confesso que não sei dizer se o instituto da “condução coercitiva” do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva para depor na Polícia Federal é legal ou ilegal – falta-me conhecimento jurídico para tanto. Como trata-se de uma interpretação – ou seja, de um julgamento subjetivo – os argumentos pró e contra parecem ambos de tal maneira convincentes que, ao invés de me esclarecer, confundem. No entanto, se houve mesmo excesso no desempenho da Polícia Federal, obedecendo a uma determinação do juiz do caso Lava Jato, Sérgio Moro, devemos exigir com veemência o estrito cumprimento da ordem, no sentido de preservar o nosso fragilíssimo Estado de Direito.
Concordo também que o saldo socioeconômico dos dois mandatos do governo Lula, entre 2002 e 2010, foi o melhor da nossa história recente. O Produto Interno Bruto cresceu a uma média de 4% ao ano, a inflação esteve sob controle, o desemprego atingiu a marca surpreendente de 5,3% da população economicamente ativa, a taxa de juros chegou a recuar para 8,7% ao ano, e, mais importante que tudo, por meio de um eficiente sistema de transferência de renda, pela primeira vez, em 2014, o país deixou o mapa mundial da fome – segundo a FAO, órgão da ONU, entre 2002 e 2013 o número de brasileiros em estado de subalimentação caiu 82%.
Isto posto, agora falta apenas Lula esclarecer, ponto por ponto, as gravíssimas denúncias que contra ele pesam de relacionamento promíscuo com empreiteiras envolvidas no escândalo de desvio de recursos da Petrobras, e que motivaram a Operação Lava-Jato. Segundo o Ministério Público Federal, a OAS, Camargo Corrêa, Odebrecht, Andrade Gutierrez e Queiroz Galvão repassaram 30 milhões de reais para o Instituto Lula e para LILS Palestras, entre 2011 e 2014. No mesmo período, o Instituto Lula e a LILS Palestras transferiram cerca de 1,8 milhão para empresas que têm os quatro filhos homens do ex-presidente como sócios.
Há ainda o episódio não esclarecido da reforma e compra de móveis para um sítio em Atibaia (SP), no valor de cerca de 900 mil reais, pagos por José Carlos Bumlai, preso pela Operação Lava-Jato, OAS e Odebrecht. O imóvel pertence a Jonas Suassuna e Fernando Bittar. Fernando, junto com seu irmão, Kalil, é sócio de um dos filhos de Lula, Fábio Luís - aliás, Fernando e Kalil vêm a ser filhos de Jacó Bittar, companheiro do ex-presidente na fundação do PT, e desde 2003 conselheiro da Petros, fundo de pensão da Petrobras. A OAS é também suspeita de pagar, em 2014, a reforma e a compra de móveis, no valor total de um milhão de reais, para um apartamento tríplex no Guarujá (SP), que, embora esteja em nome da empresa, seria de propriedade do ex-presidente. Finalmente, Lula tem que explicar qual o interesse da OAS em gastar, entre 2012 e janeiro deste ano, 1,2 milhão de reais para guardar dez contêineres com objetos pessoais retirados dos palácios do Planalto e da Alvorada e da Granja do Torto, armazenados em depósitos climatizados em Barueri (SP).
O clima de confronto que se desenha no horizonte só interessa a quem usufrui do poder, sejam eles velhos nomes, sejam eles novíssimos
Condenar o ex-presidente por antecipação é alimentar o ódio que parte da elite brasileira sempre demonstrou em relação ao PT, por conta da perda de privilégios atávicos. No entanto, tão grave quanto demonizá-lo é inocentá-lo previamente. Ao invés de cercar-se de um corpo de eminentes advogados para esclarecer o mais rápido possível as acusações de corrupção e lavagem de dinheiro de que é suspeito, Lula preferiu convocar a militância para defendê-lo. A História demonstra que povo marchando nas ruas nunca foi o juiz mais sábio. No jogo democrático, é fundamental a manifestação das multidões para apoiar essa ou aquela causa, mas questões jurídicas devem ser resolvidas nos tribunais. A impressão que tenho é a de que há grupos radicalizados apostando na assertiva de quanto pior, melhor. E sempre, nestas circunstâncias, quem sai perdendo é a população mais pobre.
Estamos vivendo uma das mais graves crises institucionais da nossa história. Há um processo de impeachment em curso contra a presidente Dilma Rousseff, o presidente da Câmara, Eduardo Cunha, segundo na linha de sucessão, é réu no Supremo Tribunal Federal, e todas as principais lideranças, situacionistas ou oposicionistas, encontram-se desmoralizadas. A conjuntura política paralisa ainda mais a economia, que entra no segundo ano de crescimento negativo do Produto Interno Bruto, inflação e desemprego em alta e falta de perspectivas. Esse quadro já é, em si, suficientemente instável para conduzir-nos a um cenário de impasse. O clima de confronto que se desenha no horizonte só interessa a quem usufrui do poder, sejam eles velhos nomes, sejam eles novíssimos.
Termino com um poema em prosa do alagoano Jorge de Lima, publicado em 1938, intitulado “O grande desastre aéreo de ontem”, que a meu ver sintetiza à perfeição o momento em que vivemos: “Vejo sangue no ar, vejo o piloto que levava uma flor para a noiva, abraçado com a hélice. E o violinista, em que a morte acentuou a palidez, despenhar-se com sua cabeleira negra e seu estradivárius. Há mãos e pernas de dançarinas arremessadas na explosão. Corpos irreconhecíveis identificados pelo Grande Reconhecedor. Vejo sangue no ar, vejo chuva de sangue caindo nas nuvens batizadas pelo sangue dos poetas mártires. Vejo a nadadora belíssima, no seu último salto de banhista, mais rápida porque vem sem vida. Vejo três meninas caindo rápidas, enfunadas, como se dançassem ainda. E vejo a louca abraçada ao ramalhete de rosas que ela pensou ser o paraquedas, e a prima-dona com a longa cauda de lantejoulas riscando o céu como um cometa. E o sino que ia para uma capela do oeste vir dobrando finados pelos pobres mortos. Presumo que a moça adormecida na cabine ainda vem dormindo, tão tranquila e cega! Ó amigos, o paralítico vem com extrema rapidez, vem como uma estrela cadente, vem com as pernas do vento. Chove sangue sobre as nuvens de Deus. E há poetas míopes que pensam que é o arrebol”.
Luiz Ruffato é jornalista e escritor.
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