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Guerra síria também cura as feridas no hospital inimigo

Combatentes sírios feridos internados em Israel tem esperanças no cessar-fogo

Juan Carlos Sanz
Um ferido sírio, no hospital de Nahariya, no litoral israelense.
Um ferido sírio, no hospital de Nahariya, no litoral israelense.E. Kaprov
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“Hudna! hudna!”, o vocábulo árabe equivalente à trégua percorre como se fosse um mantra no térreo do hospital da Galileia Ocidental em Nahariya, uma cidade litorânea israelense ao lado da fronteira com o Líbano. Seu eco ricocheteia na ala dos sírios, quarenta homens em idade de combater internados com a cabeça ferida por um tiro e as pernas destroçadas pelos estilhaços. Eles se recuperam sob a custódia de soldados à paisana após sua internação nos hospitais de um país inimigo.

Israel e a Síria nunca assinaram a paz. A linha de armistício de 1948 foi pelos ares na guerra dos Seis Dias e na do Yom Kippur, quando o Estado judeu se apoderou, primeiro, e manteve, depois, as Colinas de Golã. Quase moribundos, alguém os deixou de madrugada na porta da cerca da zona desmilitarizada de Quneitra, a cidade síria abandonada aos pés do território ocupado e anexado. Desde 2013, o Governo israelense autoriza por “razões humanitárias” o atendimento médico de aproximadamente 2.000 sírios vítimas do conflito. Para os casos de feridas traumáticas de guerra nessa região da Síria, essa é a única forma de sobrevivência.

A maioria dos pacientes visitados pelo EL PAÍS chegou em meio a intensos combates no sul do país ao hospital da Galileia Ocidental, no qual receberam a notícia do primeiro cessar-fogo observado de forma geral em cinco anos de conflito. Alan, de 27 anos, coloca um gorro de lã para que as costuras que dão voltas por sua cabeça não o estigmatizem como um novo Frankenstein. “Nasci de novo, e agora quero voltar a uma Síria em paz”, diz enquanto um enfermeiro árabe-israelense examina seus ferimentos.

Como todos os pacientes da ala, será devolvido à Síria assim que se restabelecer. Não existem exceções quando se trata de cidadãos de um Estado com o qual Israel continua tecnicamente em guerra. Alan irá retornar imediatamente a Beilta, uma aldeia na província de Quneitra onde ninguém poderá saber que ele foi curado em um hospital israelense. Seus colegas de sala no hospital insistem em ocultar sua identidade e pedem ao fotógrafo para não serem reconhecidos nas fotos tiradas. Alguns, a maioria, defendem o cessar-fogo em vigor, outros acreditam que não durará muito. “O Governo cometeu muitos crimes”, alerta um dos pacientes.

Militares paramédicos israelenses atendem um grupo de sírios nas Colinas de Golã.
Militares paramédicos israelenses atendem um grupo de sírios nas Colinas de Golã.Edward Kaprov

O chamado Exército da Conquista, uma coalizão de forças rebeldes liderada pela Frente Al Nusra (filial da Al Qaeda), controla a maior parte da fronteira síria com Israel, exceto uma pequena região ao norte de Israel, na junção com a fronteira do Líbano, dominada pelo Exército governamental, e outra ao sul, na divisa com a Jordânia, transformada em feudo da Brigada dos Mártires de Yarmuk, milícia jihadista local que foi controlada pelo Estado Islâmico (EI).

Israel mostra à imprensa internacional a atenção dada aos sírios feridos, mas se recusou a receber refugiados de um país com o qual ainda não cancelou formalmente as hostilidades. Um terço dos pacientes atendidos são mulheres e crianças, diz Sara Paperin, porta-voz do hospital de Nahariya. Esses dados não batem com os do oficial responsável pela evacuação na fronteira, o tenente-coronel Itzik Malka, que em dezembro afirmou ao EL PAÍS que somente 20% dos feridos eram homens em idade militar.

O Estado Maior ordenou não fornecer atendimento médico aos combatentes jihadistas, especialmente após o linchamento de dois supostos milicianos da Al Nusra quando eram evacuados da fronteira em junho em uma ambulância militar. Um dos feridos morreu após ser espancando por uma turba de drusos, os únicos sírios que permaneceram no Golã após as guerras de 1967 e 1973, que acusam os combatentes islâmicos de atacar suas famílias em aldeias vizinhas em território sírio.

Desde 2103, por volta de 2.000 vítimas do conflito no país árabe foram atendidas em hospitais do Estado judeu

O neurocirurgião mexicano Samuel Tobías deixou a Cidade do México há quatro anos acompanhando sua nova esposa israelense. Agora junta e reconstrói crânios e recoloca os cérebros atingidos em Nahariya. Alan é um de seus pacientes sírios. “Lá, em um hospital da Cidade do México, às vezes também via coisas estranhas... Mas somente aqui encontrei um paciente que me disse após receber alta: 'Obrigado por me salvar doutor, mas se o encontrar algum dia vagando pela fronteira de meu país não terei outro remédio a não ser lhe dar um tiro'”.

Este médico judeu mexicano, de 51 anos, agora radicado na Galileia, atende pacientes sírios que em 85% dos casos sofreram lesões em combate. O restante declara ter sido vítima de acidentes mais ou menos ligados à guerra. “Não nos queixamos, temos um índice de sobrevivência de 91% dos casos, mas como médicos temos de lidar com o dilema moral de saber que serão devolvidos a um território em guerra após literalmente devolvê-los à vida”, reflete em voz alta.

“Tudo isso custa milhares de dólares”, diz a porta-voz do hospital de Nahariya, e detalha que um terço do custo do tratamento é coberto pelo Ministério da Saúde, outro terço pelo Ministério da Defesa, e o resto é pago pelo próprio hospital. “Na realidade tudo sai do mesmo orçamento público”, finaliza Paperin. A responsável pela comunicação do hospital afirma que o Exército e os serviços de inteligência não interrogam os pacientes para obter informação sobre a situação do conflito na Síria. “As normas deontológicas do hospital são muito rígidas, e os responsáveis militares da segurança não entram nos andares e alas onde estão internados os sírios”, afirma. “Claro que quando são levados de volta à Síria pelos militares não podemos controlar o tratamento que recebem”, reconhece. Israel também atende feridos do país árabe nos hospitais de Safed e Zelat, também no norte de Israel, assim como em um hospital de campanha localizado na mesma fronteira.

Na ala de cuidados intensivos de Nahariya, o doutor Tobías examina um homem de aproximadamente trinta anos internado 10 dias antes agonizando: “Ele se chama Bashar e já começa a responder às ordens. Foi preciso reconstruir seu crânio e a mandíbula com pedaços de titânio e parte do tecido de uma de suas pernas. Quando chegou aqui era como um vegetal, e a massa cerebral saía pela órbita destruída de seu olho direito”.

O neurocirurgião reconhece que dentro de um mês, no máximo, Bashar precisará voltar à Síria. Conecta um computador e mostra o processo de reconstrução em uma animação digitalizada que mostra grandes áreas da cabeças tomadas por placas e parafusos. Entusiasmado com o milagre cotidiano de seu trabalho, Tobías se permite uma piscada de cumplicidade humana com um inimigo potencial: “Olhem só, esse sim é o verdadeiro homem biônico”.

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