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Chatô, uma saga grandiloquente

Filme de Guilherme Fontes sobre Assis Chateaubriand é lançado após 20 anos 'in progress' Cinebiografia tem a trajetória maximalista de seu personagem. Mas, surpresa: é boa

Marco Ricca é Chatô no aguardado filme de Guilherme Fontes.
Marco Ricca é Chatô no aguardado filme de Guilherme Fontes.Divulgação

Pode parecer exagero e até um generalismo perigoso, mas aqui vai uma aposta: se não fosse pelo filme Chatô – O rei do Brasil, muitos brasileiros ocupados e sem tempo para as leituras (especialmente os que hoje estão na casa dos 30, e mais novos) não saberiam quem foi Assis Chateubriand (1892-1968) – grande magnata da mídia nacional, que mandou em questões da vida pública brasileira, em quase todos os seus aspectos, entre as décadas de 30 e 60.

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A produção de Guilherme Fontes levou 20 anos para ganhar as telas do cinema e, ao longo desse tempo, passeou em manchetes dos jornais por motivos não louváveis, acusado de desvio de verba pública, até que superou os percalços e finalmente chegou aos olhos do público nesta quinta, 19 de novembro. Se até hoje, quem lia sobre algum revés do longa-metragem na imprensa se sentia compelido a indagar sobre Chatô, agora quem assiste à cinebiografia sai com a sensação imperativa de querer dissecá-lo – seja através do livro de Fernando Morais, que inspirou o filme, ou, se a pressa novamente atrapalhar, através do Google mesmo.

Chatô – O rei do Brasil é uma saga grandiloquente, assim como a trajetória de seu personagem e a do filme em si – que agora, para a surpresa dos que esperavam deparar-se com um Frankstein, anda recolhendo boas críticas. A primeira de suas vantagens é: não se trata aqui de uma biografia realista e sim de uma interpretação livre, fantasiosa e com toques de farsa, que abdica da cronologia em favor da ação e aposta em uma construção de sentido em camadas.

Cidadão Kane tropical

C.M.

Nascido em 4 de outubro de 1892 em Umbuzeiro, na Paraíba, Francisco de Assis Chateaubriand Bandeira de Mello foi alguém de origem burguesa, mas não exatamente da elite. Curioso intelectualmente, estudou Direito em Recife e estreou no jornalismo aos 15 anos, escrevendo para o Diário de Pernambuco e Correio da Manhã, no Rio, entre outros. Pouco a pouco, foi criando seu próprio império jornalístico – os Diários Associados –, que chegou a reunir dezenas de jornais, revistas e estações de rádio. Apaixonado não só pelo poder, mas também pela tecnologia, foi ele quem trouxe a televisão ao Brasil, criando a TV Tupi em 1950. Morreu em São Paulo, em 1968, por complicações decorrentes de uma trombose que o paralisou.

A partir de seu poderio, esse self-made man à brasileira, perfeito Cidadão Kane tropical, exerceu enorme influência política no Brasil, sobretudo por ter apoiado a Revolução de 30, que levou o Getúlio Vargas à presidência do país. Desenvolveu com Getúlio uma proximidade contraditória, de apoios e reveses, e agiu empresarialmente com uma ética própria, ameaçando ou gratificando inimigos e aliados, inclusive lançando campanhas contra ou a favor deles em seus jornais.

Louco por mulheres, casou-se duas vezes – a segunda delas, uma menina de 16 anos – e teve com ambas esposas três filhos. Carismático, dotado de uma atitude justiceira, provocadora e até caricata, fez-se senador, tornou-se membro da Academia Brasileira de Letras e foi confudador do Museu de Arte de São Paulo (MASP).

Até agora, Aimar Labaki foi quem melhor definiu a obra, chamando-a de “fantasia bio-tropical”, em referência (com “tropical”) ao seu tom de brasilidade quixotesca. “Ele [Fontes] faz de Chatô uma figura alegórica de nosso temperamento cordial: extremamente amoroso, extremamente violento; irracional e amador em tudo que não signifique dinheiro e poder”, escreveu o dramaturgo e ensaísta em seu perfil do Facebook.

Com Marco Ricca como protagonista (interpretando aqui seu maior papel), ao lado de um elenco que conta também com Paulo Betti, Andrea Beltrão, Leticia Sabatella e Leandra Leal, o filme de Fontes rememora a trajetória de Chatô com uma espécie de julgamento causado por delírios do personagem. Em seu leito de morte (por uma trombose que o paralisou), ele imagina que participa de um programa de auditório, de onde deve sair absolvido ou condenado por aqueles que fizeram parte de sua vida.

Nada, no que se vê do roteiro escrito por Guilherme Fontes, João Emanuel Carneiro (autor de novelas como Avenida Brasil e A regra do jogo) e o norte-americano Matthew Robbins (ex-roteirista da Disney, indicado por Francis Ford Coppola, que chegou a se associar ao projeto), é naturalista. Em lugar disso, cada elemento dessa composição teatralizada lembra, justamente, o teatro que é a vida pública nacional. De maneira corajosa, trata a mídia, o “quarto poder”, como corrupta e manipuladora.

“Não sei se réu ou se rei”

O apresentador do tal programa-julgamento – um misto de Chacrinha com Silvio Santos interpretado pelo próprio Guilherme Fontes – profere, em determinado momento do filme: “Não sei se réu ou se rei”. Fala de Chatô, mas poderia estar falando do diretor, produtor e agora também distribuidor do longa, que incluiu em seus créditos finais um agradecimento a todos aqueles que o ajudaram a superar “a censura” que acompanhou o projeto ao longo de sua (longa) existência.

Retomando o imbróglio: Fontes, depois de ter disputado os direitos de adaptação do livro de Fernando Morais, começou a captar fundos para a produção em 1995, via leis de incentivo. Começou a rodar em 1997, sem ter levantado todo o dinheiro do orçamento aprovado pela lei. Os recursos acabaram, e ele teve de parar. Foi então acusado de desvio de verba pública, analisado pelo Tribunal de Contas da União (onde tem, ainda em aberto, uma dívida 80 milhões, da qual recorreu) e, à despeito de um trabalho tão truncado, lutou na justiça para terminá-lo. Em entrevista ao canal Globonews, ele garante que o filme custou o equivalente hoje a 8,6 milhões de reais, entre dinheiro público e investimentos seus (cerca de 3,4 milhões conseguidos por participações em novelas).

O fato é que conseguiu entregá-lo e, se for pela recepção que encontrou até o momento, pode lavar a alma. Ao parecer, os únicos infelizes com o resultado até o momento são os netos de Assis Chateaubriand, que tentaram proibir a estreia do filme por meio de uma notificação extrajudicial distribuída aos cinemas.

De resto, a revista Veja, que por muitas vezes desconfiou se Chatô viria à tona, publicou uma resenha definindo o filme como “Cidadão Kane antropofágico”. O ator Juca de Oliveira afirmou, na pré-estreia do filme em São Paulo, que Fontes “foi criticado por uma das maiores virtudes que se pode ter no cinema: paciência”. Para o crítico Inácio de Araújo, um dos principais do país, trata-se de uma “adaptação decente e atual”, um “acontecimento do nosso cinema”.

Sobre o Chatô da vida real o veredito de réu ou rei pode variar, mas Fontes – até então um galã de novelas, hoje saudado por alguns como “um grande diretor” – já virou rei com seu tão aguardado primeiro filme – que resultará, para quem, como ele, não cansou de Chatô, em uma série de 27 documentários para a televisão feitos em parceria com o canal GNT.

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