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O que o PL 5069 diz (e não diz) sobre a pílula do dia seguinte: tire dúvidas

Brechas no projeto levantam questionamentos sobre o oferecimento do medicamento

Mulheres se preparam para protesto em São Paulo.
Mulheres se preparam para protesto em São Paulo.Marina Rossi

O Projeto de Lei 5069, em tramitação na Câmara dos Deputados e que trata da atenção a vítimas de abuso sexual, apresenta brechas que, na opinião das feministas e dos trabalhadores da área de saúde, poderiam dificultar, inclusive, o acesso à pílula do dia seguinte.

O problema está, especialmente, nos trechos que modificam a Lei 12.845 de 2013, que dispõe sobre o atendimento obrigatório e integral de pessoas em situação de violência sexual. No país, foram feitos 1.613 abortos legais em 2014, 94% deles em consequência de estupros.

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A Lei 12.845 diz que, no caso de estupro, a “profilaxia da gravidez” é um procedimento de atendimento imediato e obrigatório em todos os hospitais do Sistema Único de Saúde. O termo foi substituído por algo pouco claro: “procedimento ou medicação, não abortivos, com eficiência precoce para prevenir gravidez resultante de estupro.

Ministério da Saúde já se manifestou, diversas vezes, afirmando que a “profilaxia da gravidez” refere-se à pílula do dia seguinte. Muitos deputados religiosos têm a interpretação de que a pílula é um medicamento abortivo. A interpretação, no entanto, é contestada pela ciência, que afirma que a pílula evita ou adia a ovulação, evitando, assim, a gravidez.

Além disso, o PL acrescenta um novo artigo à lei:

“Nenhum profissional de saúde ou instituição, em nenhum caso, poderá ser obrigado a aconselhar, receitar ou administrar procedimento ou medicamento que considere abortivo”

A interpretação dada a esse trecho é que, caso um médico acredite, por convicção pessoal ou religiosa, que a pílula é um medicamento abortivo, ele não será obrigado a oferecê-lo, ao contrário do que a lei atual prevê.

A nova lei abre ainda uma outra brecha, que poderia levar à proibição da venda da pílula em farmácias, de acordo com os críticos do PL. Ele modifica diversos artigos do Código Penal para tornar crime “induzir ou instigar a gestante a praticar aborto ou ainda lhe prestar qualquer auxílio para que o faça” e “orientar ou instruir a gestante sobre como praticar aborto”, exceto nos casos de “gravidez resultante de estupro, constatado em exame de corpo de delito e comunicado à autoridade policial”. A pena prevista (detenção de seis meses a dois anos) aumenta quando o “crime é cometido por agente de serviço público de saúde ou por quem exerce a profissão de médico, farmacêutico ou enfermeiro”. Assim, para os críticos da lei, isso pode significar que um farmacêutico que venda a pílula, no caso de ela ser interpretada como abortiva, poderá ser punido.

O caminho percorrido pelo projeto na Câmara explica porque ele também toca em questões penais. O 5069 foi apresentado em 2013 pelo deputado Eduardo Cunha (PMDB) e tinha como objetivo inicial modificar o artigo 127 do Código Penal sobre “aborto praticado por terceiros”, em que transforma em crime qualificado o “anúncio de meio abortivo ou induzimento ao aborto”. Durante a tramitação na comissão, o deputado Evandro Gussi (PV-SP), ligado à Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), a organização mais importante da Igreja Católica no país, acrescentou outros artigos ao PL e, ao final, suas sugestões foram incorporadas ao substitutivo aprovado em 23 de outubro. É esse o texto que pode ir a plenário na Câmara. Depois, se aprovado, teria de passar pelo Senado e ser sancionado pela presidenta Dilma Rousseff.

Complicar acesso ao aborto legal

Além das diferentes possibilidades de interpretação, é fato concreto que, se aprovado, o texto dificultará o aborto a mulheres estupradas que procurem o serviço de saúde por obrigar que o procedimento só seja feito quando o crime for constatado em exames de corpo de delito e comunicado à polícia. Não são raros os casos de mulheres estupradas que escolhem não expor seus agressores: ou por eles serem conhecidos (o próprio pai ou irmão, por exemplo), ou por se sentirem ameaçadas (caso de uma mulher que foi violentada por um chefe do tráfico do bairro onde mora, por exemplo), ou por escolha (porque não querem reviver o trauma ao contar para a polícia). Segundo Jefferson Drezett, coordenador do serviço de aborto legal do hospital Pérola Byington, cerca de 90% das mulheres violentadas permanecem no silêncio e só procuram ajuda quando se descobrem grávidas. Em casos como esses, será impossível “constatar em exame de corpo de delito” o crime acontecido semanas antes e, para interromper à gravidez, o mais provável é que ela recorra a um aborto inseguro, procedimento que mata uma mulher a cada dois dias no Brasil.

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