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Um dia de sol em uma laje portenha

Estreia no Brasil ‘As insoladas’, do diretor argentino Gustavo Taretto Filme retrata uma classe média enlouquecida pela paridade peso-dólar nos anos 90

Cena 'As insoladas', de Gustavo Taretto.
Cena 'As insoladas', de Gustavo Taretto.Divulgação

Um banho de laje é sempre um banho de laje, não importa onde. Certo? Errado. Se no Brasil, essa superfície de pedra que abunda nos topos das casas de grandes cidades remedia a carência de praia ou piscina para quem anseia tomar sol, na Argentina ele vira um bar, um divã ou qualquer tipo de lugar onde seja possível... discutir todo tipo de relações.

Ao menos, esse é o uso que o diretor argentino Gustavo Taretto (Medianeras) fez desse espaço tão democrático em seu filme mais recente, As insoladas, que acaba de estrear em salas brasileiras depois de debutar no Brasil durante o último Festival de Cinema Latino-Americano de São Paulo. Fica para trás o frio cinzento de Medianeras, uma crônica contemporânea sobre o amor em tempos de solidão, e entra o calor zonzo e colorido dessa nova história, que se presta aos sonhos da classe média portenha nos anos 90, enlouquecida pela paridade do peso argentino com o dólar.

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Num sábado de verão de Buenos Aires, seis amigas se encontram no topo de um edifício para se bronzear, conversar e sonhar com o dia em que estarão em uma praia de verdade – de preferência, um destino caribenho, em que o mar azul e as temperaturas sempre altas deixem para trás a tristeza do inverno, a rotina de quem trabalha sem nunca alcançar seus ideais e (por que não) até o espírito crítico e em eterno combate, típico dos argentinos.

Na laje desse sexteto, apesar da atemporalidade de um chão de concreto, praticamente tudo remete à estética dos 90: as cores vivas, as fitas cassetes enroladas com canetas, a novidade do VHS e das videolocadoras, os sapatos de plataforma e um completo destemor de tomar sol lambuzando o corpo de bronzeador e o cabelo de limão, para queimar mais. No entanto, se esses elementos estéticos e culturais eram comuns a outros países latino-americanos na época, só a Argentina vivia na pele seu período menemista – em alusão ao presidente liberal Carlos Menem, que dolarizou a economia local, permitindo que muitos argentinos viajassem para fora do país pela primeira vez.

Quem não podia viajar, fazia como as Insoladas: suspirava com a chance de fazer parte da grande festa do mundo desenvolvido, cujo modelo socioeconômico passou a ser os Estados Unidos, mas que via na Cuba socialista sua materialização de paraíso turístico. As oportunidades do liberalismo, afinal, prometiam muito, mas não eram para todos. E foi assim que Buenos Aires se viu de frente com seu envelhecido ideal europeu; e assim abriu caminho para o corralito que congelou o país em 2001.

"Perdemos nossos referenciais estéticos. A cultura do êxito se impôs, e ficaram em segundo plano as culturas do trabalho e da arte, que eram tão características de Buenos Aires até então. A cidade se modernizou, mas perdeu seu charme histórico, e as pessoas ficaram obcecadas com viagens em cruzeiros e cirurgias estéticas", declarou Gustavo Taretto à Folha de S.Paulo.

Pão e circo

Tudo isso vem à tona na tela com muita conversa, como já foi dito, a la argentina. Afim aos filmes leves, mas autorais e que sabem marcar algumas posições políticas, Taretto trabalha os diálogos do filme com a desenvoltura de um bom roteiro – ao qual se deve boa parte da fama do cinema de seu país. Os giros dramáticos do filme acontecem todos aí, em conversas soltas, pautadas apenas pela ode das mulheres ao verão, seu desejo de viajar ao Caribe e de triunfar num concurso de salsa do qual participam no fim do dia.

Ainda assim, o foco na palavra não rouba da graça do longa o trabalho interessante que ele faz em imagem. Obcecado por Buenos Aires, onde nasceu, o diretor desconstrói a bela fotografia que a cidade é capaz de dar para investir em planos fragmentados, optando por filmar ângulos feios que se tornam bonitos sempre que a câmera escolhe um detalhe ou um recorte da paisagem para se posicionar.

Mas talvez o melhor de As Insoladas esteja em perceber como a Argentina se posiciona dentro do caldeirão cultural latino-americano. O país, apesar de levar a fama de europeizado, termina retratado no filme como um lugar que comparte com o resto da região a receita de sempre: pão e circo para esquecer as mazelas do dia a dia, que nunca foram poucas. Mesmo na época dos sonhos bronzeados e maquiados de Carlos Menem.

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