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Construções abandonadas formam obras ‘surrealistas’ nas aldeias

Poços furados onde não há água e projetos esquecidos deixam rastro de concreto na mata

Crianças brincam ao lado de obra abandonada na aldeia Canamary.
Crianças brincam ao lado de obra abandonada na aldeia Canamary.Alex Almeida

Em 2008, funcionários contratados com o dinheiro do Governo federal chegaram na aldeia Novo Lugar, na Terra Indígena Alto Rio Purus, com uma proposta que prometia resolver o problema de falta de água potável no local. Perfurariam um poço, de onde puxariam com uma bomba a água limpa do lençol freático, que seria armazenada em caixas d’água gigantescas. Um índio treinado para a tarefa adicionaria cloro no líquido, que seguiria por tubulações até torneiras colocadas na porta de cada uma das 18 casas. Mas depois de meses de obra (e de milhares de reais gastos), tudo se mostrou inútil. Não havia água no local perfurado, como os índios haviam alertado.

“A gente queria que eles perfurassem em outro lugar. Eles não quiseram. Furaram 60 metros e não conseguiram achar água”, indigna-se Adelson Domingos Kaxinawá, liderança da aldeia. Os funcionários foram embora e largaram as duas caixas d’água, abandonadas, postas sob uma altíssima estrutura de concreto, numa espécie de instalação surrealista que faz conjunto com uma torneira encravada em meio a uma mata fechada, distante alguns metros. Nunca mais ninguém voltou para arrumar a lambança.

Torneira abandonada na mata.
Torneira abandonada na mata.T.B

A mesma obra foi feita na Morada Nova, com a perfuração no lugar certo. A água chegou a sair pelas torneiras durante um ano, o que evitava que as mulheres tivessem que recorrer a uma vertente, de onde uma água barrenta brota do lençol freático, e carregar o líquido em baldes pesados acima da cabeça. Mas a comodidade durou pouco. O motor que bombeava a água queimou e não foi trocado. Desde 2009 as torneiras estão secas. A estrutura abandonada somou-se a outra construção deixada para trás, de um projeto ainda mais antigo. No início dos anos 2000, o Governo decidiu construir os chamados chafarizes nas aldeias – conjuntos compostos por banheiros e chuveiros. Na Morada Nova, o banheiro foi feito em um lugar distante do centro da aldeia e, por isso, não era usado pelos índios. “A pessoa tá com vontade de ir ao banheiro, como aguenta chegar lá?”, diz José Arlindo, conselheiro da aldeia, apontando para a casa de concreto rodeada de um mato alto, onde, para chegar, é preciso descer um morro e depois subir outro. As necessidades fisiológicas são feitas no meio da mata, como em todas as aldeias. Desde 2012 morreram ali quatro crianças com diarreia, dois filhos de Arlindo.

Das nove aldeias visitadas pela reportagem do EL PAÍS no mês passado, apenas uma não possuía alguma obra abandonada, a Nova Mudança, fundada há oito anos.

Em alguns lugares, as construções-fantasma ganharam alguma utilidade. Na Canamary, o chafariz é, de fato, usado como banheiro. Só que pelas cabras. Na Dois Irmãos, a caixa d’água do chafariz, que parou de funcionar há anos por falta de manutenção, foi colocada na vertente e virou uma espécie de borda para uma represa de água improvisada. “Plantei até um pé de Buriti dentro para manter a água limpa”, orgulha-se o idealizador da obra, Geraldo Kaxinawá, de 78 anos, um dos fundadores da aldeia. O local também recebeu, em 2008, o projeto das torneiras, que já estavam havia três meses sem receber água porque a bomba que a puxava queimou.

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Na área do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) do Alto Rio Purus, onde vivem 10.422 índios em 129 aldeias, 80 pessoas morreram entre 2000 e 2013 por causa da diarreia –o segundo maior número de vítimas da doença, depois da área Yanomami, onde 89 índios perderam a vida pelo mesmo motivo no período. Os dados, entretanto, podem apresentar subnotificação, aponta o próprio Ministério da Saúde, já que muitos gestores têm dificuldade de usar o sistema informatizado que faz as estatísticas. Os números oficiais, por exemplo, registram que em 2012 morreram 12 pessoas na região com diarreia. Mas um levantamento do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) em cada uma das aldeias feito naquele chegou a um número maior: 27 pessoas, a maioria delas crianças.

Além das obras mal feitas ou abandonadas, os DSEIs também sofrem com obras que não saem do papel. O relatório da gestão de 2013 da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), responsável pelos distritos, mostra que no ano foram feitos apenas 139 dos 250 sistemas de abastecimento de água previstos para as aldeias brasileiras e 93 das 200 obras de ampliação e reforma previstas para os sistemas existentes. Também foram feitas apenas 57 das 100 obras de reforma ou ampliação de melhorias sanitárias domiciliares nas aldeias. O padrão repete o que a Controladoria Geral da União verificou em 2012, em uma auditoria. Previa-se, naquele ano, que 305 aldeias seriam beneficiadas por um programa de saneamento básico, que só chegou a três delas até o final daquele ano.

As estruturas para o atendimento de saúde também foram prejudicadas. O relatório de gestão apontou que apenas nove das 21 Casas de Apoio à Saúde do Índio previstas saíram do papel em 2013 e só dois dos seis pólos-base, espécie de posto de saúde, foram feitos.

Na aldeia Buaçu, dentro da Terra Indígena Alto Rio Purus, um posto de saúde está sendo construído, mas a obra, que deveria ter sido entregue em junho, ainda não havia acabado em 19 de julho. Segundo o responsável pela construção, o salário dos pedreiros atrasou e eles não quiseram mais trabalhar. A equipe teve que ser trocada e, enquanto o impasse não era solucionado, a obra ficou parada – mesmo cenário visto em outras duas aldeias visitadas.

Francisco e a 'yushã kurupã'

T.B.

Sem remédios, rádio para se comunicar com o posto de Santa Rosa do Purus ou canoa para chegar a qualquer lado onde haja socorro médico, o cacique e professor da Nova Mudança, Francisco Bardalhes, investe em uma farmácia viva, bem pertinho das casas da aldeia.

Com a ajuda da mãe, conhecedora de plantas medicinais, ele sai em busca de mudas pela floresta. Já são 246 plantas em sua yushã kurupã (pronuncia-se diushã curupuã), ou o "braço da mãe natureza". Há remédios para a diarreia, sapinho, acalmar criança, crises de epilepsia e até para aumentar a sabedoria e libertar de espíritos do mal. O próximo passo, diz ele, é criar uma casa de cura, para ajudar os índios e os não índios que tiverem interesse.

Francisco criou a Nova Mudança há oito anos. Crescido em uma outra aldeia dentro da Terra Indígena Alto Rio Purus, que estava sendo catequizada por evangélicos, mudou-se com a família para manter as tradições de seu povo.

Na aldeia, todo sábado acontece o ritual do Santo Daime, onde se toma um chá feito com o cipó caapi e as folhas da planta chacrona em meio a cantorias. A bebida tem um efeito alucinógeno, que, segundo a tradição indígena, tem o poder de mostrar os rumos que a aldeia deve tomar e de limpar o corpo e a alma. Na Nova Mudança também se usa a vacina do sapo, outro ritual de cura, em que secreções do sapo kambô são aplicadas na pessoa por meio de cortes feitos na pele. “Antes, a gente só adoecia por causa do espírito do animal que a gente comia. Agora, é por causa da contaminação dos brancos”, diz Francisco. “É com a medicina tradicional que estamos controlando as doenças.”

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