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Os índios que não fazem aniversário

Em 13 anos, 9.663 crianças morreram nas aldeias brasileiras antes de completar um ano O pico foi em 2013, últimos dados disponíveis, o que demonstra que a situação piorou

Maura Madja, 27 anos, segura o filho doente, Sheyenne, de um ano.
Maura Madja, 27 anos, segura o filho doente, Sheyenne, de um ano.Alex Almeida

Com os olhos semiabertos, Sheyenne, de um ano, circula pálido e completamente entregue dentro do sling preto pendurado no tórax da mãe, Maura Madja, de 27 anos. O menino está com diarreia, vômito, febre e tosse há mais de uma semana, mas ainda não recebeu atendimento médico. Uma viagem desconfortável de duas horas e meia em um barco de madeira separam sua casa, na Terra Indígena Alto Rio Purus, no Acre, do posto de saúde mais próximo, na cidade de Santa Rosa do Purus. E a equipe médica que deveria fazer visitas mensais não apareceu pelo segundo mês seguido.

A família de Sheyenne teme que a história da criança seja como a da vizinha Edna, de seis meses, que em fevereiro deste ano apresentou sintomas semelhantes, teve de ser levada pelo pai a Santa Rosa do Purus, e, em estado grave, acabou transportada de avião até Rio Branco, onde morreu uma semana depois de entrar na UTI. “A equipe de saúde não veio”, conta Bodiapi Kulina, pai da menina, perto do toco de madeira que marca o local em que a filha está enterrada na aldeia Canamary, onde crianças brincavam com o nariz escorrendo no último dia 17 de julho, quando a reportagem esteve no local. A aldeia vivia mais uma epidemia de rotavírus, explicavam os índios, mostrando intimidade com a doença dos brancos que ano após ano os visita, vitimando especialmente os mais novos.

Na área onde fica a aldeia, a taxa de mortalidade entre crianças menores de um ano é similar à de Uganda. E, nos últimos anos, a situação piorou, uma tendência que se repete na maioria das áreas indígenas brasileiras, apontam dados obtidos pelo EL PAÍS junto ao Ministério da Saúde via Lei de Acesso à Informação. Os registros permitem um retrato detalhado de cada um dos 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs) do Brasil, responsáveis pela saúde de quase 700.000 índios de 5.700 aldeias.

Clique para ver a situação em cada DSEI.
Clique para ver a situação em cada DSEI.

Os dados apontam que, em 2011, 670 índios morreram antes de completar um ano. Em 2013, o ano mais recente disponibilizado pelo ministério, nasceram menos crianças, mas o número de mortes foi maior: 793 não chegaram ao primeiro aniversário, o maior número de mortes na faixa etária da série histórica obtida pela reportagem, que começa no ano 2000. Com isso, a taxa de mortalidade infantil indígena do país (número de mortes por 1.000 nascidos vivos) passou de 31,90 para 43,46  – um número duas vezes maior do que a média do Brasil (15) e similar ao de países como a Namíbia ou São Tomé e Príncipe. A piora nesses dados vai na contramão da quantidade de dinheiro investida nesses distritos, que aumentou exponencialmente em todos eles desde 2011. Em 2015, os 34 DSEIs juntos receberam 1,39 bilhão de reais, 221% a mais do que os 431,5 milhões de 2011. Uma boa quantia dessa verba (quase 90 milhões de reais) é usada para fretar voos para áreas mais distantes.

Apenas nove distritos não apresentaram piora nas suas taxas de mortalidade infantil. Nos outros 25, há casos como o do Vale do Javari, no Amazonas, onde vivem 5.489 índios de seis etnias diferentes: a taxa de mortalidade infantil no local, que já chegou a ser de 20 por mil nascidos vivos em 2000, aumentou, entre 2011 e 2013, de 86,73 para 123, chegando a um valor equivalente ao que o Chade registrava no início dos anos 90. No DSEI Kayapó do Mato Grosso, onde vivem 5.682 índios de nove etnias, a mortalidade infantil subiu de 11, em 2010, para 74,29, em 2013. E entre os Yanomami, que apresentam a pior situação de saúde do país, a taxa de mortalidade infantil bateu recorde: chegou a 149 em 2013, o mesmo que Angola tinha nos anos 90. Em março deste ano, um dos índios da etnia enviou um WhatsApp ao telefone da reportagem para denunciar o descaso com a saúde de seu povo. “Povo Yanomami está morrendo por falta de assistência de saúde. Mortes causadas por doenças, pneumonia, diarreia, tuberculose. Nos ajude a divulgar para as autoridades do Brasil e do mundo”, pedia Anselmo Yanomami.

Em um relatório de gestão de 2013, divulgado no ano passado, o secretário Antônio Alves de Souza, da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), dá pistas que ajudam a entender o problema. “Em 2013 a Sesai encontrou alguns obstáculos à plena execução de seu objetivo estratégico”, afirmou, ressaltando a “escassez crônica de recursos humanos” e as “condições precárias” da infraestrutura dos estabelecimentos de saúde indígenas e dos veículos e barcos utilizados para fazer os atendimentos das aldeias.

WhatsApp com pedido de socorro enviado por Anselmo.
WhatsApp com pedido de socorro enviado por Anselmo.

Os dados obtidos pelo EL PAÍS mostram que mesmo com o programa Mais Médicos, que há dois anos traz ao Brasil profissionais de saúde de outros países, como Cuba, para trabalhar em regiões pobres e de difícil acesso, o Governo brasileiro não conseguiu suprir a carência de médicos em áreas indígenas. Apenas metade dos 34 DSEIs tem uma taxa maior ou igual a de um médico para 1.000 habitantes, padrão usado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) para comparar os países. O próprio Ministério da Saúde afirmou, ao lançar o programa Mais Médicos, que o objetivo do país era atingir a longo prazo uma taxa de 2,5 médicos para 1.000 habitantes, equivalente a de países desenvolvidos - os últimos dados, de 2011, mostram que a média do país era de 1,95.

No distrito de Mato Grosso do Sul, com mais de 72.000 indígenas, existem 33 médicos a menos do que o necessário para atingir a taxa da OMS. No local, 2.112 pessoas morreram nos últimos 13 anos por causas evitáveis, aquelas que poderiam não ter acontecido caso houvesse imunização, atenção à gestante, ao parto e ao recém-nascido, além de diagnóstico e tratamento adequados. A região é um dos principais focos de conflitos por terra entre fazendeiros e indígenas e há aldeias em situação de extrema precariedade, na beira de estradas, o que agrava a situação de saúde desses povos.

"É uma quantidade de recurso público gasta que a gente não sabe para onde vai. Temos surtos de diarreia há anos nas aldeias e nada se resolve. Precisamos de atendimento para que nossos parentes não adoeçam", reclama Ninawá Huni Kui, conselheiro estadual acreano de Saúde e vice-coordenador da Organização dos Povos Indígenas do Acre, Noroeste de Rondônia e Sul do Amazonas (OPIARA). Ao lado de Manoel Kaxinawá, presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena de Santa Rosa do Purus, ele levou a reportagem para conhecer a realidade das aldeias do Alto Rio Purus, em uma viagem que durou quatro dias.

Na região visitada pelo EL PAÍS, dois médicos cubanos se dividem para atender as aldeias localizadas no município de Santa Rosa do Purus. Eles coordenam duas equipes de trabalho, formadas por um enfermeiro, dois técnicos de enfermagem, um dentista, um auxiliar de saúde e um barqueiro, responsável por levá-los pelo rio Purus, o único trajeto possível para chegar às aldeias.

20,6% das crianças menores de seis meses e 29% das menores de cinco anos atendidas pelos DSEIs em 2013 apresentam peso inadequado para idade

Pelo plano de trabalho, as duas equipes deveriam se dividir e visitar a área indígena todos os meses, em viagens que duram entre 15 e 20 dias por causa das paradas para o atendimento. Mas, neste ano, apenas duas visitas haviam sido feitas até o meio de julho, segundo os índios. Em junho, por exemplo, as viagens não foram feitas porque os barqueiros passavam por capacitação, contou Igor Albuquerque Lustosa, que coordena a operação do posto de Santa Rosa do Purus. Em julho, até o dia 20, quando o EL PAÍS estava na região, as equipes ainda não haviam saído pois aguardavam a chegada de medicamentos, cuja entrega estava atrasada.

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Em maio e junho deste ano, chegaram ao posto da cidade 48 índios se queixando de diarreia. Muitos navegaram até lá nas próprias canoas, a maioria feita com troncos de árvores da região. Outros foram levados pelos agentes de saúde indígena, índios das próprias aldeias que servem de "ponte" entre os postos e as comunidades. Esses agentes recebem pouquíssimo treinamento, segundo relatos deles próprios, e cabe a eles, muitas vezes, decidir se um doente está em situação grave o suficiente para ser levado ao posto de saúde. Caso decida que sim, ele leva o paciente à cidade em uma canoa da aldeia, com combustível dado mensalmente pelo posto de saúde. "Eles falam que é só pra levar o doente se for um problema sério. Mas e se a criança morre no meio do caminho?", desabafa José Genésio Jacinto, 36, da aldeia Morada Nova.

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Há também a alternativa de chamar por rádio o único barco de emergência existente, que já chegou a ficar sem funcionar por seis meses por problemas no motor. Mas nem todas as aldeias têm o equipamento. E a estrutura do barco do Governo não é melhor que a da canoa dos índios: não há, por exemplo, espaço confortável para deitar. Os pacientes, graves o suficiente para serem removidos, viajam sentados por até oito horas pelo rio. Um trajeto, em meio a ataques de mosquitos, desconfortável até para quem está bem de saúde.

Neste ano, até 16 de julho, 15 pessoas morreram na área por causas que vão de diarreia a pneumonia, que podem ter relação com o rotavírus. A água contaminada é uma das formas de transmissão do vírus, um problema já que as aldeias sofrem com a falta de uma estrutura de saneamento básico adequada. Em 2012, um surto de diarreia matou 27 pessoas no Alto Rio Purus, três delas na aldeia Morada Nova, onde vivem dez famílias da etnia Huni Kuin (também chamada de Kaxinawá). Alisson e Josinaldo tinham seis meses e Eva, 1 ano. Em 2014, José Arlindo, pai de Josinaldo, perdeu outro filho. Josinei passou três meses internado em Rio Branco. “Ele teve diarreia desde recém-nascido. Era desnutrido”, conta José. O menino foi enterrado uma semana antes de comemorar seu primeiro aniversário.

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