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A mordaça na era digital

Governos aprenderam a driblar os efeitos libertadores da Internet e condicionar informação Eles estão tendo sucesso na hora de invadir os meios de comunicação independentes

Philip Bennet / Moisés Naím
Uma mulher protesta contra os ataques à imprensa na Venezuela em fevereiro de 2014
Uma mulher protesta contra os ataques à imprensa na Venezuela em fevereiro de 2014Alejandro Cegarra (AP)

Duas convicções se assentaram no pensamento contemporâneo sobre o jornalismo. A primeira é que a Internet é a força que mais tem revolucionado os meios de comunicação. A segunda é que a Rede e as ferramentas de comunicação e informação que gerou, como YouTube, Twitter e Facebook, estão transferindo o poder dos Governos para a sociedade civil e os blogueiros, cibercidadãos ou os chamados “jornalistas cidadãos”. É difícil não estar de acordo. Entretanto, essas afirmações escondem o fato de que os Governos estão tendo o mesmo sucesso que a Internet na hora de invadir os meios de comunicação independentes e condicionar a informação que chega à sociedade.

Além disso, em muitos países pobres ou de regime autocrático as ações governamentais pesam mais que a Internet na hora de definir como e quem produz e consome a informação. Há um fato surpreendente que ilustra isso: a censura está em pleno apogeu na era da informação. Em tese, as novas tecnologias tornam mais difícil, e em última instância impossível, para os Governos controlar o fluxo da informação. Alguns afirmam que o nascimento da Internet pressagiava a morte da censura. Em 1993, John Gilmore, um pioneiro da Internet, declarava à Time: “A Rede interpreta a censura como um obstáculo a contornar”.

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Hoje, muitos Governos aprenderam a driblar os efeitos libertadores da Internet. Como os empreendedores, estão recorrendo à inovação e à imitação. Em países como Hungria, Equador, Turquia e Quênia, as autoridades imitam ditaduras como Rússia, Irã e China, censurando notícias críticas e criando suas próprias empresas estatais de comunicação. Também estão criando ferramentas mais sutis para atacar os jornalistas. Dessa forma, a esperança de que a Internet permitiria a proliferação de fontes de informação independentes e diversas se tornou realidade apenas para uma parte minoritária da humanidade, a que vive em democracias consolidadas.

Na Venezuela, dois dos principais jornais, críticos ao Governo, foram vendidos a empresas misteriosas

Como jornalistas, conhecemos de primeira mão os efeitos transformadores da Internet. A Rede é capaz de reformular qualquer equação de poder em que a informação seja uma variável. Mas isso não é uma lei universal. Quando começamos a mapear exemplos de censura, alarmou-nos o fato de encontrar à vista casos tão numerosos e tão descarados. Mas mais surpreendente ainda é a magnitude da censura que não se vê, e que é difícil detectar por diversos motivos. Primeiro, algumas ferramentas de controle da imprensa mascaram-se como perturbações do mercado. Segundo, em muitos lugares, o uso da Internet e a censura estão crescendo rapidamente de forma simultânea. Terceiro, embora a Internet seja um fenômeno mundial, a censura ainda é percebida como um problema local ou nacional. As provas indicam algo diferente.

Na Venezuela, por exemplo, entram em jogo esses três fatores. O uso da Internet está crescendo a grande velocidade, apesar do ambicioso programa de censura aplicado pelo Governo. Alguns de seus métodos permanecem ocultos, e vieram à luz em outros países. Um deles consiste em assumir o controle de veículos independentes por meio de empresas fantasmas e falsos compradores.

Segundo Tamoa Calzadilla, que até o ano passado era diretora de investigação do Últimas Notícias, o jornal de maior circulação da Venezuela, nem na Europa nem nos Estados Unidos se faz ideia da quantidade e variedade de pressões a que os jornalistas de seu país são submetidos. Calzadilla pediu demissão em sinal de protesto depois que compradores anônimos assumiram o controle do jornal e o novo diretor exigiu mudanças injustificadas em uma reportagem investigativa sobre os protestos contra o Governo. “Essa não é a censura de sempre, onde põem um soldado na porta do jornal e agridem os repórteres”, dizia-nos Calzadilla. “Em vez disso, compram o jornal, prestam queixa contra os jornalistas e levam-nos a julgamento, escutam suas conversas e transmitem-nas pela televisão estatal. É a censura do século XXI.”

A nova censura conta com muitos profissionais e com métodos cada vez mais refinados:

Na Hungria, a Autoridade dos Meios de comunicação tem o poder de recolher informação detalhada sobre os jornalistas e sobre a publicidade e os conteúdos editoriais. O regime do primeiro-ministro Viktor Orbán recorre a multas, impostos e concessão de licenças para pressionar os veículos críticos, e destina a publicidade estatal para os que simpatizam com o Governo.

A liberdade de imprensa em 2015
A liberdade de imprensa em 2015

No Paquistão, a autoridade reguladora estatal suspendeu a licença de radiodifusão da Geo TV, o canal mais popular do país, depois que o serviço secreto prestou contra a empresa uma queixa por difamação, depois do assassinato de um dos jornalistas mais famosos da rede. O canal ficou 15 dias fora do ar em junho de 2014. Os jornalistas paquistaneses dizem que a autocensura e os subornos são moeda corrente.

Na Turquia, a legislação relativa à Internet confere à Direção de Telecomunicações autoridade para eliminar qualquer site ou conteúdo “a fim de proteger a segurança nacional e a ordem pública, bem como para evitar um crime”. O presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, foi criticado por prender dúzias de jornalistas e usar investigações tributárias e multas elevadas como represálias por coberturas informativas críticas. Recentemente, o Governo bloqueou o Twitter e outras redes sociais supostamente em resposta a um escândalo de corrupção em que estavam envolvidos Erdogan e outros funcionários de alto escalão.

Na Rússia, o presidente Vladimir Putin está reconfigurando a paisagem midiática à imagem e semelhança do Governo. Em 2014, vários veículos de comunicação foram fechados ou mudaram sua linha editorial de um dia para outro em resposta à pressão governamental. E, ao mesmo tempo em que lançava seus próprios canais informativos, o Governo aprovava uma lei que limitava o investimento estrangeiro na imprensa russa.

Tradicionalmente, a censura era um exercício de copiar e colar. Os funcionários do Governo inspecionavam o conteúdo de jornais, revistas, livros, filmes ou informativos e suprimiam ou alteravam de modo que só a informação considerada aceitável chegasse à população. Nas ditaduras, a censura liberava o caminho para o fechamento de veículos de imprensa e a perseguição a jornalistas rebeldes, que podiam acabar no exílio, na prisão ou mortos.

No início da década de noventa, o jornalismo chegou à Internet, e a censura o seguiu. Os filtros, os bloqueios e os ataques cibernéticos substituíram as tesouras e a tinta preta. Alguns Governos proibiram o acesso a sites de que não gostavam e redirecionaram os usuários a sites que pareciam independentes, mas que, na verdade, estavam sob seu controle. Infiltraram funcionários especializados nos fóruns e chats para influenciar no debate. E encarregaram piratas informáticos anônimos de destruir sites e blogs, e impedir a presença na Internet de quem os criticava atacando ou bloqueando seus perfis no Facebook ou contas do Twitter.

Flores sobre o logotipo do Google em Pequim, depois que a empresa anunciou o fim de sua atividade na China por causa da censura.
Flores sobre o logotipo do Google em Pequim, depois que a empresa anunciou o fim de sua atividade na China por causa da censura.Jason Lee (Reuters)

Os ativistas com conhecimento em tecnologia logo encontraram forma de se proteger e evitar a censura digital. Durante algum tempo, deu a impressão de que estavam ganhando a batalha contra burocracias governamentais centralizadas, hierárquicas e lentas. Mas os Governos aprenderam rápido, sobretudo os mais autoritários. Muitos deixaram de ser meros espectadores da revolução digital para converter-se em especialistas em tecnologias que lhes permitiram monitorar conteúdos, controlar ativistas e jornalistas e direcionar o fluxo da informação.

A China é o país onde ficam mais patentes as contradições geradas pela Rede. A nação com mais usuários da Internet e o crescimento mais veloz da população conectada é também o maior censor do mundo. Dos 3 bilhões de internautas do mundo, 22% vivem na China (nos Estados Unidos, quase 10%). Pequim criou o que se chama de “Great Firewall” (grande firewall, o filtro da Internet) para bloquear conteúdos, incluindo páginas de informação estrangeiras. Calcula-se que dois milhões de censores controlam a Internet e a atividade dos usuários. Entretanto, 76% dos chineses afirmam sentir-se livres da vigilância governamental, segundo uma pesquisa citada pela rede britânica BBC. É a porcentagem mais alta dos 17 países estudados.

O motivo é que as autoridades chinesas conceberam sistemas de censura mais sutis e difíceis de detectar pelos cidadãos. Em Hong Kong, onde por lei Pequim deve respeitar a liberdade de imprensa, forçaram a demissão de redatores e colunistas críticos, promoveram a retirada de publicidade tanto estatal como privada, incluída a de algumas multinacionais, e lançaram ataques cibernéticos contra alguns sites. A Associação de Jornalistas de Hong Kong descreveu o ano de 2014 como “o mais sombrio para a liberdade de imprensa em várias décadas”.

As ações da China evidenciam as novas opções que a censura tem hoje: pode ser direta e visível, ou indireta e sigilosa. A censura furtiva pode levar à criação de entidades que parecem empresas privadas ou organizações não governamentais que se apresentam como membros “da sociedade civil”, mas que na realidade são controladas pelo poder político. E assim, piratas informáticos da Rússia ou da China, por exemplo, atacam as redes dos críticos – tanto em seus países como no exterior – de forma difusa, como ativistas anônimos espalhados pelo mundo, quando são aliados do regime.

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A censura furtiva atrai os Governos autoritários que querem parecer democráticos (ou, pelo menos, não querem ser vistos como ditaduras à moda antiga).

Nos regimes pseudodemocráticos, o modo como um Governo exerce a censura costuma refletir a tensão existente entre a projeção de uma imagem democrática e a supressão implacável da divergência. A Venezuela é um bom exemplo. O país de 30 milhões de habitantes converteu-se em um laboratório de diversas formas de controle do fluxo de informação. O modelo venezuelano oferece vários ingredientes substanciais: veículos independentes ousados e batalhadores, um establishment da imprensa que serve às elites, uma revolução socialista que diz construir uma democracia popular e uma população polarizada que é testemunha de uma guerra de informação quase permanente.

À medida que se foi agravando a crise política e econômica, o Estado e seus aliados parecem ter sacado uma nova arma: silenciar a informação crítica mediante a aquisição secreta de algumas das empresas privadas de comunicação mais incômodas para o Governo.

De início, as operações se assemelhavam à mudança de guarda que se está produzindo nos grupos midiáticos tradicionais de todo o mundo. Afetaram o Últimas Noticias, o jornal mais vendido, mas com mais problemas econômicos da Venezuela, e o jornal mais antigo, El Universal. Mas, com o tempo, essas vendas se revelam não uma consequência das perturbações do mercado, mas sim uma intromissão política por meio de compradores alinhados com o Governo, dinheiro obscuro e uma rede de empresas estrangeiras, algumas delas criadas de um dia para outro a fim de ocultar a identidade dos novos proprietários.

As estratégias legais empregadas nessas aquisições tornam difícil seguir sua pista. Não há nenhuma prova que as conecte de forma direta com fundos governamentais. Mas as enormes irregularidades nas operações e as mudanças posteriores na linha editorial convenceram os jornalistas de que esses meios perderam sua independência.

No caso do Últimas Noticias e da rede a que pertence, a compradora foi a Latam Media Holding, uma empresa fantasma criada em Curaçao menos de um mês antes da aquisição. O preço, que não foi tornado público na hora, superou 97 milhões de dólares, soma enorme no contexto da frágil economia venezuelana. Segundo os documentos que examinamos, dois dias antes da venda uma de suas ex-acionistas vendeu sua participação por 11 milhões de dólares para um fundo latino-americano de titularidade nebulosa, uma transação que foi mantida em segredo. O maior jornal do país mudou de mãos, e as perguntas sobre a origem dos fundos e a identidade dos proprietários tiveram como resposta o silêncio.

A intriga aumentou quando se soube que a Latam Media Holding é controlada por Robert Hanson, um empresário britânico sem experiência em investimentos em meios de comunicação nem na América Latina. Hanson é o filho multimilionário do finado empresário industrial lorde Hanson e personagem habitual da crônica social londrina (um “patife sofisticado”, segundo uma memorável descrição do jornal The Times). O empresário se mantém em silêncio.

Os novos diretores do Últimas Noticias asseguraram à equipe que as normas de qualidade do jornal não iriam mudar. Mas, depois de algumas semanas, segundo relatam os jornalistas, pediram-lhes que suavizassem os artigos críticos ao Governo ou os pressionaram diretamente para que não os escrevessem, acusação negada pelo atual diretor. Desde a compra, mais de 50 redatores se demitiram.

Os jornalistas e os executivos dos meios de comunicação da Venezuela estão acostumados a ser tratados duramente pelas autoridades. O finado presidente Hugo Chávez e seu sucessor, Nicolás Maduro, atacaram a mídia privada por apoiar a oposição e a acusaram de desestabilizar o país. O Governo aprovou leis que limitam a liberdade de imprensa, restringiu o acesso à informação pública, impôs multas e tributos às empresas de comunicação, negou licenças de radiodifusão, obrigou à retirada de programas da grade de transmissão e usou o controle de divisas para provocar escassez de papel-jornal, que é importado. Pelo menos uma dúzia de jornais fecharam por falta de insumos.

O Estado tem um longo histórico de perseguição, detenção e espancamento de jornalistas, que além disso são objeto de contínuas ações por difamação. As autoridades costumam recorrer aos meios de comunicação estatais para caluniar determinados jornalistas ou publicações. Os repórteres sabem que correrão grande risco pessoal se escreverem sobre a corrupção ou sobre a escassez de produtos básicos —desde papel higiênico até remédios e alimentos essenciais. Em pesquisa feita pelo braço venezuelano do Instituto de Imprensa e Sociedade, que defende a liberdade de imprensa, 42% dos jornalistas consultados afirmaram terem sido pressionados por funcionários da Administração para mudar um artigo.

A repressão direta contra os meios de comunicação saiu cara para o Governo: provocou protestos pelo país e condenações internacionais. E nunca funcionou por muito tempo.

Até há pouco tempo, os venezuelanos conseguiam encontrar informação consistente sobre assuntos delicados como a saúde de Chávez (morreu de câncer em 2013), as impactantes estatísticas sobre criminalidade (o segundo mais alto índice de assassinatos do mundo) e a gestão estatal do setor energético (o que inclui as maiores reservas de petróleo do mundo).

Mas as coisas mudaram na primeira metade de 2014, com os violentos confrontos entre manifestantes e a polícia. Protestos estudantis em resposta a um crime num campus universitário se disseminaram até virar uma verdadeira crise para Maduro. Quando começaram a se multiplicar os mortos e feridos, o governo fechou o NTN24, um canal a cabo internacional de notícias. Bloqueou todas as imagens no Twitter. Houve jornalistas, fotógrafos e cinegrafistas detidos e espancados. Os meios de comunicação estatais pouco informavam sobre a violência e sobre os motivos dos protestos. Especialmente surpreendente foi a fraca cobertura no Globovisión, um canal de notícias 24 horas. Alguns meses antes tinha sido comprado por uma seguradora supostamente próxima ao regime de Maduro. Era a última rede de televisão crítica ao Governo.

No Últimas Noticias, a equipe de investigação dirigida por Tamoa Calzadilla conseguiu um grande furo: um vídeo que mostrava policiais e agentes à paisana disparando contra um grupo de manifestantes em fuga e matando um deles. Apesar de o diário ter acabado de mudar de mãos, Calzadilla e sua equipe publicaram o vídeo na Internet. Sua reportagem levou às primeiras prisões de membros das forças de segurança. Só que pouco tempo depois o presidente do grupo proprietário do jornal se demitiu e foi substituído por um aliado do partido do Governo.

No mês seguinte, Calzadilla apresentou ao novo diretor uma reportagem sobre os manifestantes e a polícia se preparando para os confrontos em Caracas. Conta que ele se negou a publicá-la a menos que dissesse que os manifestantes eram financiados pelos Estados Unidos (não havia prova disso). Em vez de fazer isso, Calzadilla se demitiu e, antes de sair do prédio, tuitou a frase “O jornalismo primeiro”.

Se a aquisição do Últimas Noticias foi um mistério, a compra do El Universal em julho de 2014 teve elementos próprios de uma farsa. Seus proprietários (que Maduro tinha descrito na TV como oligarquia rançosa) anunciaram a venda do jornal, com 106 anos de idade, um mês depois dos protestos. O comprador foi uma empresa de investimentos espanhola fundada um ano antes com capital de cerca de 4.000 dólares. Segundo os documentos publicados pelo blogueiro Alek Boyd, a única acionista da empresa espanhola era uma firma registrada no Panamá chamada Tecnobreaks, Inc. Mas quando Boyd entrou em contato com os fundadores da Tecnobreaks, deparou-se com um homem e seu filho, venezuelanos, que aparentemente se dedicavam ao conserto de carros. Disseram-lhe que não sabiam nada sobre a venda e que não eram gente rica. Continua até hoje a ser um mistério quem está por trás da compra do El Universal e quanto foi pago por ele (calcula-se que entre 20 e 100 milhões de dólares). A mudança de proprietário teve efeito claro sobre o dia a dia da redação. Durante o mês seguinte à venda, pelo menos 26 jornalistas disseram ter sido demitidos por escrever de forma crítica. Rayma Suprani, uma popular cartunista, foi demitida por causa de um quadrinho no qual brincava com a famosa assinatura de Chávez, que ia diminuindo até se converter numa linha reta, que representava a morte da saúde na Venezuela. “Não sabemos quem comprou o ElUniversal nem quem paga os salários”, declarou à CNN em espanhol depois de sua demissão. “Mas agora sabemos que ficam incomodados por uma linha editorial crítica. Dessa maneira podemos presumir que não foi um homem invisível, mas o Governo, que se apoderou do jornal.”

Suprani publica agora suas tirinhas no Twitter, onde tem mais de meio milhão de seguidores. Muitos dos jornalistas com mais iniciativa na Venezuela passaram para a Internet. Tamoa Calzadilla é diretora de investigação do Runrun.es, um portal independente de notícias com repórteres em Caracas, onde, segundo nos disse, “estão fazendo o jornalismo que faz falta”. Mas embora o uso da Internet esteja em rápido crescimento na Venezuela, menos da metade da população tem acesso à Rede. Num país partido ao meio pela política, a maioria dos venezuelanos se inteira apenas de metade da história.

Apesar da crise econômica, o Governo está investindo grandes somas na construção de seu império de mídia. A rede de TV estatal TeleSur se tornou o maior canal de notícias 24 horas da América Latina. Fundada por Chávez “para liderar e estimular a unificação dos povos do Sul”, agora emprega 800 jornalistas. A empresa assinalou um marco no ano passado com a apresentação de uma página web e um informativo em inglês, que propagandeou em anúncio de página inteira na revista The New Yorker.

Por um momento, durante a primavera árabe, em 2011, parecia que as redes sociais estavam dando aos ativistas defensores da democracia certa vantagem diante de regimes entrincheirados. É famosa a história de que, enquanto os manifestantes celebravam suas vitórias no Egito, o executivo do Google Wael Ghonim disse ao veterano jornalista Wolf Blitzer: “Se quiser libertar um povo, dê-lhe a Internet”. Embora a complexa dinâmica do levante fosse muito além da revolução do Facebook, a expressão refletia a sensação de que alguma coisa importante havia mudado.

Quatro anos depois, a liberdade dos meios no Egito se vê submetida a um devastador ataque. Dezenas de jornalistas foram presos, segundo o Comitê de Proteção dos Jornalistas. A Anistia Internacional informou no ano passado que tinha documentos que provavam a existência de um programa governamental para criar um sistema de espionagem e supervisionar o que acontece no Facebook, Twitter, WhatsApp e outras redes sociais. Poderia ser um slogan para a contrarrevolução do Facebook: para outorgar poder a um Governo, dê-lhe a Internet.

As filtragens de Edward Snowden deixaram claro que a Internet é uma ferramenta com a qual qualquer Governo, com os meios necessários, pode bisbilhotar as vidas dos cidadãos, jornalistas incluídos. É questionável que a espionagem feita pelos Estados Unidos ou pelo Reino Unido em seu território possa ser considerada censura. Mas a permissão do Governo Obama para grampear os telefones de jornalistas e a perseguição judicial das filtragens tiveram efeito intimidador muito bem documentado na informação sobre segurança nacional. Que um Estado leve a cabo rastreamentos eletrônicos faz com que nenhum jornalista que informe sobre assuntos secretos possa, conscientemente, assegurar o anonimato de suas fontes.

Essas políticas de segurança nacional colocam os EUA e outras democracias consolidadas no mesmo debate que aqueles países, como a Rússia, que veem a Internet como uma ameaça e uma ferramenta de controle. A maioria desses países não tentou se esconder diante das acusações de que usam a Internet para realizar operações de vigilância. Pelo contrário - Rússia, Índia, Austrália e outros aprovaram normas de segurança que transformam em lei essa prática.

Os jornalistas temem, com razão, ficar presos nessa armadilha eletrônica. Com frequência são seu alvo. A China pirateou as contas de e-mail de alguns jornalistas estrangeiros, supostamente para rastrear suas fontes e invadir os servidores dos grandes jornais norte-americanos. A Agência Nacional de Segurança (NSA, na sigla em inglês) dos Estados Unidos invadiu a rede da TV Al Jazeera. O Governo colombiano espionou a comunicação de jornalistas estrangeiros que cobriam as conversações de paz com grupos guerrilheiros. O Organismo de Segurança de Redes de Informação da Etiópia seguiu a pista de jornalistas nos Estados Unidos. Bielorrússia, Rússia, Arábia Saudita e Sudão controlam de forma rotineira a comunicação dos jornalistas, segundo a organização Repórteres sem Fronteiras.

Joel Simon, diretor-executivo do Comitê para a Proteção dos Jornalistas, descreve as consequências sinistras da vigilância em seu último livro, The New Censorship (a nova censura). Simon relata com detalhes assustadores a maneira como o Irã transformou o uso da Internet em uma arma contra os manifestantes em 2009. Os agentes de segurança torturaram repórteres como Maziar Bahari (em cuja história se baseia o filme de Jon Stewart 118 Dias) até confessarem as senhas de suas contas de e-mail e mídias sociais, e depois vasculharam suas redes e identificaram e detiveram suas fontes. Os funcionários iranianos também criaram contas falsas de Facebook para atrair os ativistas. “O uso do Facebook e de outras plataformas sociais por parte dos Governos para desmantelar redes políticas se tornou uma prática habitual”, escreve Simon.

Os Estados não são os únicos que utilizam estas técnicas. No México, os cartéis do tráfico de drogas realizam operações monstruosas na Internet para intimidar seus adversários, o Governo e a população. Os traficantes silenciaram com brutalidade as tentativas de informar anonimamente sobre suas atividades nas redes sociais. Em outubro de 2014, vários criminosos sequestraram a “jornalista cidadã” María del Rosario Fuentes Rubio e publicaram imagens de seu cadáver na conta dela no Twitter.

Na Rússia, e no resto do mundo, um padrão se repete: o Estado pressiona os veículos de comunicação independentes a migrarem para a Internet, onde devem reconstruir seu público e onde o Governo é um poderoso arrendatário, ou, inclusive, proprietário do território. Caso os veículos independentes se tornem grandes demais na Rede, como o popular portal russo de notícias Lenta.ru, pode ser que seus diretores sejam demitidos de repente, que a linha editorial mude e que o portal venha abaixo.

Uma tendência inquietante é a união de vários Governos com o objetivo de construir uma Internet mais fácil de controlar. A China assessorou o Irã sobre como criar sua própria Internet halal (uma espécie de intranet nacional gigante). Pequim também compartilha seus conhecimentos com a Zâmbia para bloquear conteúdos essenciais da Internet, de acordo com a organização Repórteres sem Fronteiras. Empresas de vigilância particular oferecem seus serviços aos países que desejam melhorar seus programas de decodificação.

Não bastasse isso, alguns Governos seguem contando com que a autocensura faça o seu trabalho. Em outubro passado, após um ataque mortal contra o Exército perpetrado por militantes islâmicos, os principais responsáveis por mais de uma dúzia de jornais egípcios se comprometeram a não publicar as críticas contra o Governo e a bloquear “as tentativas de questionar as instituições do Estado e de insultar o Exército, a polícia e o Judiciário”. Os proprietários da emissora de televisão Al Nahar acrescentaram: “A liberdade de expressão nunca pode justificar que se abale o moral do Exército egípcio”.

Para cada Governo que consegue controlar a informação ou reprimir jornalistas, há exemplos de pessoas corajosas que encontraram formas de escapar ou derrubar os controles oficiais. Ou simplesmente estão dispostas a correr o risco de se opor a um Governo que afirma ser o único que tem autoridade para escrever a história. Esta disputa de poder está muito longe de ter terminado, e seu desenlace vai variar de um país para o outro e com o tempo. A inovação tecnológica criará novas opções que permitirão a indivíduos e organizações se opor à censura governamental, mesmo quando os Governos recorrerem a técnicas que ampliem sua capacidade de censura.

As pressões sobre os Governos para que sejam transparentes, prestem contas, deem acesso à informação pública e favoreçam a participação da opinião pública não vão desaparecer. Os Estados autocráticos se deparam com cidadãos mais conscientes e inquietos do ponto de vista político, e mais difíceis de serem calados. A Ucrânia demonstrou que uma população farta pode derrubar um presidente autocrata, mesmo que este conte com o apoio da vizinha Rússia. Em Hong Kong, como vimos no ano passado, um grupo de ativistas sem líderes desafiou o imenso poder da China.

Mas os Estados continuam tendo uma capacidade extraordinária para alterar o fluxo da informação e adaptá-lo a seus interesses. Da Rússia à Bolívia, passando pela Turquia e pela Hungria, os governantes estão colocando seus aliados nos supremos tribunais e no Judiciário e enfraquecendo instituições cuja razão de ser é evitar a concentração de poder. Neste contexto político, os veículos de comunicação independentes não conseguem sobreviver por muito tempo.

A Internet pode redistribuir o poder. Mas é ingênuo pensar que existe uma solução tecnológica simples para aqueles Governos e dirigentes que estão decididos a concentrar o poder e dispostos a fazer o que for necessário para conservá-lo. A censura crescerá e diminuirá à medida que a inovação tecnológica e o desejo de liberdade se choquem com Governos empenhados em controlar seus cidadãos, começando pelo que leem, veem e escutam.

Philip Bennett é diretor do Centro DeWitt Wallace para os Meios de Comunicação e a Democracia, e professor da Escola Sanford de Políticas Públicas da Universidade Duke. Foi diretor-geral de The Washington Post e Frontline. Moisés Naím é membro da Fundação Carnegie para a Paz Internacional, colunista e colabora como redator de The Atlantic. Eduardo Marenco colaborou com este artigo como pesquisador.

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