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‘Caso Nisman’ agrava a forte polarização política na Argentina

O Poder Judiciário se divide diante da manifestação silenciosa convocada para quarta-feira em protesto contra morte do promotor

Francisco Peregil
Cartazes em Buenos Aires se referem ao 'caso Nisman'.
Cartazes em Buenos Aires se referem ao 'caso Nisman'.R. A. (AP)

O cadáver do promotor Alberto Nisman pintou um retrato demasiadamente fiel da Argentina atual: uma sociedade tão habituada aos crimes e às operações criminosas dos serviços secretos e da Casa Rosada que quase ninguém acredita que Nisman tenha se suicidado; uma presidenta que primeiro comenta por Facebook sobre ter sido suicídio ou “suicídio?” – com interrogação – e que três dias depois sustenta a tese de assassinato; uma presidenta que utiliza o poder de seu cargo para escrachar em um jornal a juíza que investiga a morte de Nisman, o informático que emprestou a pistola a ele, o espião que colaborava com ele…

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Uma presidenta que se apresenta como vítima de uma operação onde a morte de Nisman foi apenas um meio para desestabilizar seu Governo e que nunca expressa suas condolências à família do homem que a denunciou; um Governo tão posicionado contra o grupo Clarín que o chefe de Gabinete, Jorge Capitanich, rasgou diante das câmaras um exemplar do jornal; um Poder Executivo tão agressivo com um setor do Poder Judiciário que tacha de “golpistas” os cinco promotores que convocaram uma manifestação em silêncio para homenagear Nisman na quarta-feira, quando sua morte completa um mês.

Nesse contexto, o promotor Gerardo Pollicita, sobre quem recaiu a denúncia de Nisman após sua morte, assumiu o lugar de seu antecessor e acusou, na sexta-feira, a presidenta, o ministro de Relações Exteriores, Héctor Timerman, e outros ocupantes de altos cargos e dirigentes governistas pelo mesmo delito que Nisman já os tinha incriminado: encobrimento de supostos terroristas iranianos que tinham uma ordem de procura da Interpol pela suposta participação no atentado contra a Amia (Associação Mutual Israelita Argentina), que, em 1994, tirou a vida de 85 pessoas em Buenos Aires. Agora, o juiz Daniel Rafecas é quem decidirá seguir ou não com a investigação solicitada pelo promotor.

Rafecas vai interromper suas férias de verão para retornar na próxima quarta-feira. Nesses dias em que passou afastado, deve ter tido tempo para ler a denúncia de Nisman. Após a morte do promotor, o Governo decidiu acabar com o segredo em torno do sumário e publicar na Internet as 290 páginas do documento. O Governo qualificou a denúncia como inconsistente e delirante, como se não tivesse sido escrita por um promotor. Vários juristas reconheceram ao jornal La Nación que entre tudo que consta na acusação de Nisman, seria difícil provar o delito de encobrimento. Alguns dos jornalistas mais críticos em relação ao Governo reconheceram em público que a denúncia era mais fraca do que tinham pensado, que apresentava provas pouco contundentes e que se baseava muito em recortes de jornais. Mas Gerardo Pollicita estima que há suficientes indícios para suspeitar que Cristina Kirchner e os outros cometeram um delito. A maioria dos dirigentes da oposição falou sobre a “gravidade institucional” do momento e apelou à justiça para que continue com seu trabalho.

A morte de Nisman está desenhando o retrato de uma classe política e judicial dividida quase por uma linha

A Casa Rosada vinculou o promotor Pollicita com o dirigente opositor Mauricio Macri, porque ocupou cargos no clube de futebol Boca Juniors quando Macri era presidente do time. Já o chefe de Gabinete, Jorge Capitanich, advertiu que a acusação de Pollicita faz parte de “uma estratégia de golpe judiciário ativo”. O Governo está consciente de que as próximas eleições presidenciais serão realizadas em 25 de outubro deste ano, às quais Cristina Kirchner não pode concorrer por um terceiro mandato consecutivo, e que, por isso, possui apenas mais 10 meses na Casa Rosada. Mas a governante e seus ministros insistem na teoria do golpe de Estado e da desestabilização, apesar do pouco tempo que resta para entregar o comando.

A morte está pintando o retrato de uma classe política e judiciária dividida quase que por uma linha. Fronteira que parece estar marcada pela manifestação silenciosa de quarta-feira. E a oposição se somou a ela. A presidenta, na última quarta-feira, discursou para todos os canais de televisão rodeada de ministros e militantes que a encorajavam com seus cânticos. Não mencionou Nisman e no final declarou: “Sabem de uma coisa? Nós ficamos com o canto, nós ficamos com a alegria, nós ficamos com esse grito de ‘viva a Pátria'. E eles? Para eles deixamos o silêncio”.

Dois dias depois, Cristina Kirchner foi acusada pelo promotor Pollicita. E sua resposta chegou por Facebook no sábado de manhã: “Sabem de uma coisa? O ódio, a difamação, a infâmia, a calúnia, isso deixamos para eles”. A mensagem, mais uma vez, traçava uma linha entre “eles” e “nós”.

A juíza e ex-esposa do promotor Nisman, Sandra Arroyo Salgado, esclareceu esta semana em uma audiência aberta no Senado que não é governista nem opositora e pediu que “não continuem politizando” a investigação da morte de Nisman. Mas seu desejo parece ser quase utópico no ambiente eleitoral que se respira antes das eleições presidenciais de outubro. Qualquer gesto estará carregado de conteúdo político. Nem sequer Salgado poderá evitá-lo. Ela não disse se participará da manifestação silenciosa. Mas não importa o que faça, a linha já está traçada. De um lado, os do “silêncio”, “do ódio, da difamação, da infâmia”. E do outro lado, os do canto e da alegria. Um mau tempo para matizes.

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