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Não há paz em Tierra Caliente

O conflito continua, o tráfico se fragmentou e poucos acreditam nos grupos de autodefesa

Jan Martínez Ahrens
Membros do Exército mexicano inspecionam veículos na estrada que liga Apatzingán a Aguililla (Michoacán) dia 24 de janeiro.
Membros do Exército mexicano inspecionam veículos na estrada que liga Apatzingán a Aguililla (Michoacán) dia 24 de janeiro.saúl ruiz

José Zamora Méndez é um homem simples. De segunda a sexta, de manhã e de tarde, trabalha no Cemitério Municipal de Apatzingán. E também, quando há demanda, nos fins de semana. Ganha por quinzena 3.302 pesos (591 reais). É muito pouco, sobretudo se levarmos em conta que trabalha com o instrumento mais preciso para medir a morte em Tierra Caliente: a pá do coveiro. Com ela na mão sentencia que poucas coisas mudaram nesta sofrida região do sul do México. Os pobres continuam sendo enterrados em montinhos de terra sob uma cruz de madeira e os “ricos demais”, como diz Zamora, em rosados panteões de inspiração dórica, equipados com tanques, placa solar, ar condicionado e até churrasco para celebrar o falecido. Um universo misturado que o coveiro contempla sem nenhum entusiasmo. “Quero que me enterrem na terra, somos consumidos rapidamente e podemos ir embora daqui muito antes.”

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Tierra Caliente continua sendo um péssimo lugar para viver e muito pior para morrer. Já se passaram quase dois anos desde o levante dos grupos de autodefesas contra a depredação do cartel de Los Caballeros Templarios, e um ano desde que o presidente da República do México, Enrique Peña Nieto, enviou um comissário plenipotenciário para apaziguar essa vulcânica região. Neste tempo, embora o pesadelo místico da narco-seita de Los Templarios diminuiu um pouco, ninguém em Apatzingán, La Ruana ou Tepalcatepec acredita que a paz tenha voltado. Os tiroteios continuam acontecendo, a taxa de homicídios se mantém entre as mais altas do planeta e, à noite, as ruas andam vazias sob a luz branca dos postes. O lobo continua aí, todos sabem. E há quem esteja esperando armado. Martín Gómez, vereador do PAN (direita) em Apatzingán, é um deles. Foi sequestrado e sua casa, saqueada. Sabe que ainda querem matá-lo. Mas jura que não sairá daí “por vergonha”. Acredita em Deus e em sua AK-47. De noite dorme sobre os carregadores, caso alguém venha atacá-lo. Agora, em uma pousada de sua cidade, a capital de Tierra Caliente e feudo templário, pede um café grande e puro. Para este vereador, defensor dos grupos de autodefesa, o combate está longe de acabar: “O comissário presidencial se apoiou nos setores mais podres, arruinou os grupos de autodefesa, negociou com novos grupos criminosos como Los Viagras para terminar com os Templários, e agora estes ocuparam o lugar daqueles.”

Em Michoacán, a marca do comissário Alfredo Castillo Cervantes é profunda. Sua chegada abriu um novo ciclo. Investido de poderes extraordinários (só comparáveis aos da comissão encarregada de acabar com o movimento zapatista nos noventa), teve um início fulgurante. Apoiado em um exército de quase 10.000 agentes federais e soldados, rompeu a espinha dorsal dos templários. Em poucos meses, caíram seus dois líderes: o enlouquecido Nazario Moreno González, apelido El Chayo, e Enrique Plancarte Solís, O Senhor dos Cavalos. O longo braço alcançou políticos corruptos como o até então intocável Jesús Reyna, o homem que de seu posto de Secretário de Governo (Interior), e governador interino durante 2013, havia dirigido a luta contra o narco e que, depois se descobriu, estava ligado a Los Templarios. As armas federais também se voltaram contra a principal artéria do cartel: seu financiamento. Diminuiu o peso da extorsão, que tinha sob sua bota desde a venda ambulante até o poder municipal.

A estratégia foi completada com a liquidação dos instáveis grupos de autodefesa, os bandos armados de origem popular que tinham se levantado contra os narcotraficantes depois do colapso do Estado. O caminho eleito foi sua absorção pelas Forças Armadas, um corpo que no século XIX conseguiu pacificar o país. Com este recurso eles receberam armas, uniformes e a promessa de um salário. Mais de 3.000 sublevados se transformaram, quase da noite à manhã, em agentes da autoridade. No caminho, seu principal líder, o rebelde doutor José Manuel Mireles, foi preso por se negar a acatar a nova ordem.

Tierra Caliente continua sendo um péssimo lugar para viver e muito pior para morrer

Por um tempo, Tierra Caliente, cenário de todas as convulsões da história do México, parecia ter se acalmado. Mas logo a pá do coveiro voltou a trabalhar. A Força Rural se mostrou muito fraca. A infiltração do narco através dos perdoados (antigos bandidos supostamente arrependidos), o apoio de alguns comandantes às organizações criminosas e as labirínticas rivalidades entre seus chefes fizeram saltar pelos ares qualquer vislumbre de paz. A meados de dezembro, um enfrentamento entre duas facções acabou com 11 mortos em La Ruana. Três semanas depois, nove civis vinculados a Los Viagras, foram mortos a tiros depois de uma confusa desocupação policial da Prefeitura de Apatzingán. Tensões há muito ocultas surgiram sem pudor. O México contemplou espantado como a experiência das forças rurais se encaminhava para o caos. O comissário Castillo teve que dissolver estas forças em várias regiões de Tierra Caliente. E pouco depois, convertido em um personagem incômodo pela proximidade das eleições, foi deposto pelo presidente Peña Nieto. Seu tempo havia terminado.

- “Vem uma guerra entre os narcos.”

O padre José Luis Segura, de 59 anos, está sentado em um pátio de sua paróquia, em La Ruana. É o edifício mais alto do município. Seu campanário de sete pisos destoa em uma cidade de casas baixas e ruas multicoloridas. A torre mostra dois relógios com as agulhas mostrando doze em ponto. Assim estão já faz 10 anos. Sob este tempo parado, o padre enterrou muitos caídos nesta guerra sem fim. Ele mesmo vive ameaçado, já chegaram a arrancá-lo do carro para dar-lhe uma surra, mas isso não faz com que perca a calma. “Os narcos estão se reacomodando, há grupos se matando e as autoridades precisam intervir rapidamente. Aqui ainda reina a impunidade”, adverte.

As palavras do padre apontam para o problema fundamental de Michoacán. A queda de El Chayo propiciou a ascensão de Servando Gómez Martínez, apelido La Tuta, para a cúpula dos Templários. Este amante da magia negra, possivelmente o homem mais procurado do país, zombou ao longo destes meses do cerco e não deixou de publicar vídeos comprometedores. Prefeitos, filhos de mandatários e ex-governadores sucumbiram às gravações que os mostravam em atitude servil frente a La Tuta. Oculto nestas vulcânicas e lindas terras, o narcotraficante convulsionou como quis a vida política da região. Mas seu poder real, a imensa máquina de depredação que chegou a possuir em Tierra Caliente, se rompeu no choque com o exército federal. E pelas fissuras de seu império entraram as novas hordas criminosas. Pequenos grupos de bandidos, como Los Viagra, que antes vendiam sua artilharia a quem mais pagasse criaram, eles mesmo, um poder autônomo. Da fragmentação surgiram muitos grupos ultraviolentos que agora lutam entre si para tomar o controle territorial e ocupar o trono de seus antecessores. É a balcanização do terror.

“A qualquer momento isto vai desabar, estamos em uma calma tensa”, prevê Luis Medina, de 47 anos. Usa chapéu de palha, jeans e uma enorme fivela com a mandíbula de um búfalo em alto-relevo. Possui uma moderna empacotadora de limões em San Juan de los Plátanos, entre Apatzingán e La Ruana, bem onde ficava, há dois anos, a fronteira entre os templários e os grupos de autodefesa. Nessa linha, bem nas portas de sua empresa, houve um tempo no qual ao amanhecer encontrava os corpos decapitados pelos narcos. “Aqui os empresários correm riscos, e quem não se acostuma, vai embora.” Medina está sentado em seu escritório de paredes verdes e portas blindadas. Parece sincero quando fala. Embora admita que a extorsão tenha diminuído, insiste em que os roubos aumentaram e, sobretudo, que a economia não se recupera. As promessas de investimento do Governo federal não se materializaram e a violência afugenta o capital privado. Com um PIB per capita de 5.150 dólares, a metade da média mexicana e quase seis vezes menos que a espanhola, Michoacán continua sendo um doente crônico. Qualquer novo vírus pode afundá-lo. Outra vez. E a força rural não parece o antidoto adequado.

Na entrada de Tepalcatepec (15.000 habitantes), sob um empoeirado todo azul de Cervejas Corona, Isauro Birrueta Rodríguez está preparando uma sopa sobre umas brasas. Acaba de colocar milho e pimenta na caldeira e parece estar com fome. Na altura do cinto aparece a barriga e a Beretta 9 milímetros. Foi pecuarista, autodefesa e agora pertence à força rural. Com seus companheiros de posto, vigia em um destroçado banco de automóvel, um dos poucos municípios onde esta nova polícia parece funcionar. No último ano não tiveram nenhum enfrentamento grave. E ao contrário de outros lugares, conseguiram se blindar (ao menos aparentemente) contra os narcos. Mas nenhum deles está muito contente. Não têm dinheiro para gasolina, nem para gastos de munição, nem sequer para o uniforme.

- E vocês mataram narcos?

- “Claro que sim”, responde com força um agente rural, para imediatamente, depois dos olhares interrogativos de seus companheiros, retificar. “Bom, não, só feri...”

Sua evasiva desata uma gargalhada geral. Pouco depois todos se sentarão para comer, de costas para a estrada que devem vigiar, esse caminho pelo qual pode chegar a qualquer momento a pancada que todos temem em Tierra Caliente. A besta que dará trabalho, mal pago, ao coveiro Zamora.

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