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COPA DO MUNDO 2014 | ARGENTINA x ALEMANHA

O pesadelo do rio da Prata

A insuperável criatividade da torcida argentina a torna um inimigo bastante incômodo no Brasil A história ainda poderia condenar o país a ver o Cristo Redentor de azul e branco no domingo

Argentinos celebram em Copacabana a vaga na final.
Argentinos celebram em Copacabana a vaga na final. A. TAHERKENAREH (EFE)

Na quarta-feira, nas areias da Fan Fest de Copacabana, quando veio a decisão por pênaltis, não eram só argentinos e holandeses que rezavam. Milhares de torcedores brasileiros que haviam passado duas horas animando Robben e companhia olhavam para céu e roíam as unhas desesperadamente. “Não pode ser, é demais”, ouvia-se uma e outra vez. Quando Maxi Rodríguez converteu o pênalti definitivo, os cariocas tiveram de ver uma de suas praias mais famosas sendo invadida pela torcida alviceleste: saltos, gritos eufóricos, cânticos de exaltação patriótica. A insuperável criatividade da hinchada argentina faz dela um inimigo extraordinariamente incômodo para os quatro últimos dias de torneio: como se não bastasse ter levado sete gols em uma semifinal de proporções sísmicas, o Brasil contém a respiração perante a possibilidade de ver Lionel Messi se sagrar campeão no Maracanã, aceitando assim a humilhação de apoiar majoritariamente o seu carrasco, a Alemanha, no próximo domingo. “Isso parece uma maldição”, dizia um padeiro no começo da manhã em Ipanema. “Isso aqui vai encher de argentinos, e não vou nem conseguir dormir. Agora nos resta torcer pelos alemães.”

Não existe no futebol de alto nível nenhuma rivalidade comparável à de brasileiros e argentinos: países gigantes, vizinhos, com uma natureza generosa e uma paixão enlouquecida pela bola, há décadas brigando a respeito de quem é o melhor jogador de futebol da história (Pelé, Di Stéfano ou Maradona). Os brasileiros frequentemente se referem aos argentinos como hermanos, mas entre aspas, com tom zombador. Inclusive ex-jogadores ilustres presentes no Rio, como Claudio Cannigia (o autor do 1 x 0 no último duelo entre os dois países em Copas, em 1990), somaram-se na terça-feira ao entusiasmo pátrio depois do Mineirazo e entoaram a estrofe da moda: “Brasil, diga-me o que se sente / ter o seu papai em casa. (...) / Juro que, mesmo que passem os anos, nunca vamos nos esquecer...”. Diego Armando Maradona, por sua vez, tampouco demonstrou o cavalheirismo exibido pela equipe alemã: “Com 6 x 0, eles estiveram prestes a suspender a partida, porque já haviam fechado o set [do tênis]”, contava ele em seu programa diário na Telesur, entre risos.

O sangue não correu no Rio na quarta na Fan Fest, ainda que alguns argentinos tenham se queixado do uso de gás lacrimogêneo por parte dos agentes de segurança. Calcula-se que 70.000 argentinos (muitos deles sem ingresso) chegarão ao Rio nas próximas 36 horas, por diversas vias. A área de acampamento do Terreirão do Samba já está saturada de camisas alvicelestes e cuias de mate. Um vendedor de Copacabana explicou que não há mais cigarros “porque os torcedores argentinos compraram tudo”. A luta para encontrar entradas de segunda mão para a final é desapiedada e foi dificultada pela operação da polícia brasileira contra uma rede de revenda ilegal ligada à FIFA.

Apesar do imponente futebol alemão nas semifinais, os torcedores argentinos se agarram à enorme alegria demonstrada por Messi na quarta. Ao craque do Barcelona falta somente mais um desafio (o mais duro) para conseguir seu passaporte definitivo para a glória eterna em um país que sempre o olhou enviesado e que agora está apaixonadamente dedicado à Copa depois de um início bem morno (de acordo com o crescimento de sua equipe). “Previsão de 18 graus para o domingo. Vão comprando a carne. Saem de novo 40 milhões de assados. Vamos Argentina...”, dizia no Twitter um jornalista de Mendoza durante a ressaca da festa popular que tomou conta de todo o país.

“Após o Maracanazo do Uruguai, um Maracanazo da Argentina apenas alguns dias depois do Mineirazo seria absolutamente insuportável”, conta para este jornal na Granja Comary um membro da delegação brasileira que prefere manter o anonimato. A reconquista do templo do futebol brasileiro pelo Rio da Prata, 64 anos depois do gol do uruguaio Ghiggia, acarretaria também uma homenagem ao recentemente falecido Alfredo Di Stéfano, símbolo do futebol do sul do continente. A invasão argentina é inevitável. “Isso é um sonho. Ganharemos uma Copa no Brasil, e no Maracanã! Nunca imaginamos que chegaríamos tão longe”, dizia exultante Paula, uma fisioterapeuta de Buenos Aires que chegou ao Rio em uma caravana. Outros grupos de jovens se animavam a entoar cantos menos respeitosos: “Maradona foi melhor que Pelé e nunca perdeu a Copa em casa!”.

Além de jogar sal em feridas muito recentes, a chegada da Argentina na mítica final do Maracanã deixou Luiz Felipe Scolari sem seu último recurso para motivar sua equipe e a torcida para a cruel partida de amanhã em Brasília. A história poderia condenar o Brasil a um escárnio esportivo incomparável: a possibilidade de que o Cristo Redentor se ilumine de azul e branco na noite de domingo em homenagem à equipe campeã. “Realmente essa é a Copa das Copas”, sentencia um garçom do restaurante mais próximo da Granja Comary, o reluzente e agora sombrio quartel da seleção brasileira.

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