Favelas de concreto
EL PAÍS visita a Torre de David, o arranha-céu que aloja 800 famílias e ex-presidirários A fama internacional deste edifício humilha a Venezuela
Bem-vindos ao bairro de favelas mais alto do mundo. A distinção não se refere à altura em relação ao nível do mar. O que lhe dá o título é a relação vertical com o pavimento da avenida Andrés Bello, em Caracas. São cerca de 200 metros da rua até o topo do Bloco A do conjunto, que é coroado com uma plataforma desenhada como heliporto.
Na verdade, você ou qualquer outro visitante espontâneo, não será necessariamente bem-vindo. As visitas são rigorosamente controladas. Se conseguir passar pelo controle da portaria, coordenadores de segurança em cada piso vão perguntar aonde você vai. Mas vai valer a pena ter uma boa resposta. Se for jornalista, o visitante deverá andar em companhia de Alfredo, o coordenador de imprensa nomeado há alguns meses pela Cooperativa Caciques de Venezuela, que governa o local. Castigado pela fama de abrigar criminosos, os chefes da comunidade instruíram Alfredo a evitar notícias ruins na imprensa, equilibrar os pontos de vistas dos repórteres, que sem dúvida continuarão vindo enquanto este lugar conservar seu atrativo como um parque para o safari jornalístico.
O local se chama Torre de David. Quando sua construção foi iniciada, em 1990, era para ser um edifício de escritórios com a fachada espelhada - na verdade, dois edifícios, um de 45 andares, e outro de 20, e um módulo para um estacionamento com 10 pisos -, o terceiro mais alto da Venezuela e o oitavo da América do Sul. No entanto, a morte do seu promotor e uma enorme crise financeira, entre outros desastres que assolaram o país, congelaram as obras semi-acabadas. Como uma ruína moderna, a estrutura permaneceu de pé, primeiro como uma homenagem de algum ressentimento coletivo, e depois como um monumento de estética discutível e perturbadora.
Em 2007, uma invasão tolerada pelo governo chavista conseguiu arranjar-lhe um propósito prático. Os ocupantes, por volta de 2 mil pessoas provenientes de bairros pobres de toda a área metropolitana, organizaram-se em torno de um líder: Alexandre El Niño Daza, condenado duas vezes e transformado, na prisão, em pastor evangélico.
E
El Niño Daza deixou de ser apenas um nome nas páginas vermelhas no começo de 2013, quando uma extensa crônica sobre a torre escrita por Jon Lee Anderson, na revista The New Yorker, concedeu-lhe potencial de personagem literário. Sua ascensão ao Olimpo da ficção culminou, em outubro do ano passado, no horário nobre da emissora de televisão americana FOX. Naquela noite, estreou um capítulo da série Homeland, o terceiro da temporada, no qual o protagonista Nicholas Brody chega à Torre de David com um ferimento de bala no estômago. É recebido por um Niño Daza que parece muito pouco com o original.
Y. L. é uma mulher de trinta e poucos anos que não teria dificuldades em saber quem é Nicholas Brody, se já não sabe: a fachada oeste da torre está forrada de parabólicas que brilham que nem espinhos. Como habitante real - e provisório, esclarece - da Torre, seu testemunho desmente a imagem que muitos caraquenhos têm do edifício: a de um ninho do crime. "O que eu mais gosto daqui é a segurança", conta "Onde eu vivia, enquanto esperava o jeep para subir ao bairro, em qualquer momento poderia haver perigo. Aqui isso não acontece."
O David da torre não é o rei dos judeus. Trata-se de outro David, de sobrenome Brillembourg, um magnata financeiro que queria erguer este edifício como um símbolo do seu poder. No entanto, as ressonâncias bíblicas que foram associadas à construção correspondem, de certa forma, com a ordem evangélica que prevalece. Porque, embora uma invasão sempre envolva violência e, neste caso, foi conduzida por ex-presidiários, a vida diária dos moradores da torre parece dirigida por uma versão diluída do culto. As colunas do átrio do complexo são pintadas de rosa e pistache verde. Os escritórios dos vários departamentos da cooperativa identificam-se com rótulos de papelão colorido. Na igreja, onde Niño Daza faz seu serviço, há cadeiras de plástico e instrumentos da banda que anima suas cerimônias.
Isso não significa que você tem que pertencer a essa igreja para conseguir um lugar na torre. Na verdade, alguns inquilinos assistem à missa. Mas o regime interno é completamente inspirado nos valores evangélicos, um culto generalizado nas prisões venezuelanas.
No dia que o EL PAÍS visitou a Torre de David, nem El Niño e nem Alfredo, o secretário de imprensa, estavam presentes. Ambos encontravam-se viajando em missão relacionada à gestão do edifício, disse o secretário da cooperativa. Paradoxalmente, suas ausências proporcionaram a oportunidade de visitar o prédio até o 10° andar, o último no qual chegam, pelas rampas de estacionamento, os motociclistas que cobram 20 bolívares (algo em torno de 30 centavos de euro na paridade SICAD 2, uma das taxas de câmbio da Venezuela) por corrida. Em contrapartida, as pessoas com quem poderíamos conversar mostraram-se evasivas e defensivas, sabendo que poderiam transgredir os limites da versão oficial.
Na comunidade, aceitam-se casais e famílias, nunca homens solteiros. São 800 famílias que vieram de todas as partes. Pagam por volta de 20 euros por mês de manutenção. Sem elevadores, a subida diária às residências assemelha-se a um calvário. As pessoas mais velhas abdicam de sair com frequência. Porque, como se diz, embora haja motociclistas que ajudam com a subida, nem sempre há dinheiro para pagá-los. Os caminhões transportam materiais de construção até o 10° andar, o que sublinha o mérito de quem mora nos pisos superiores. No edifício A da torre, o mais alto, os colonos sobem até o 28° andar de 45. No B, ocuparam todos os 20 pisos.
A classe privilegiada dos inquilinos vive entre o oitavo e o 12° andar: bastante abaixo para explorar a dinâmica das motocicletas, mas alto o suficiente para evitar o mau cheiro do lixo acumulado em um lado da estrutura. Outros enfrentam o desafio cotidiano de serem que nem sherpas, carregados de vitalidade, para conquistar as alturas, castigo que se equilibra com o privilégio que, certamente compartilham com os colegas de favelas nas colinas que ficam em volta de Caracas: a partir dessa altura, há as melhores vistas da cidade e do vale.
Obviamente, a precaridade dessas casas construídas em uma colméia de concreto traz problemas. Um deles é a disposição problemática de resíduos sólidos. Embora haja comitês para lidar com isso em todos os andares, é sempre uma forte tentação optar pelo método rápido de jogá-los ao vazio. Quem faz isso, corre o risco de sofrer punições, que incluem a expulsão da comunidade. Mas resíduso continuam a se acumular no lado nordeste da torre, e o mau cheiro reina no piso térreo, um sinal que a dissuasão funciona pouco.
Outro problema é o abastecimento de água. Os habitantes pensaram em acessá-la por meio de um sistema de bombas. Mesmo assim, a pressão é baixa e há um rodízio para que cada piso tenha água a cada oito dias, em média, para que os tanques sejam preenchidos.
Contudo, no geral, a sensação predominante entre os habitantes é de que as suas condições melhoraram. Agora, vivem a uma curta distância da principal linha de metrô de Caracas e não precisam levantar-se tão cedo para chegar aos locais de trabalho ou estudo. Ainda melhor: em alguns casos, conseguem trabalhar ou estudar dentro da própria Torre de David.
Feiras, restaurantes e outros comércios informais foram instalados em alguns apartamentos. Manicures e cabelereiros oferecem seus serviços. Em uma casa, no 15° andar, "montam aparelhos", aparatos de ortodontia que entre a juventude das zonas populares converteram-se em símbolo de status, junto com tênis Nike e correntes pesadas (chamadas de "guayas") de ouro ou imitações. Em novembro do ano passado, inclusive, operou-se o milagre de levar a montanha a Maomé quando a escola pública Ana María Delón, do bairro Pinto Salinas - onde muitas das crianças residentes estudam - mudou temporariamente as suas classes para um dos muitos espaços sobressalentes nos andares mais baixos do complexo enquanto reformava suas instalações.
A consagração da Torre de David como lugar metafórico da trama da série Homeland acabou com a paciência de alguns venezuelanos
"Nem negros, nem brancos", diz a fotógrafa Ángela Bonadies, uma das primeiras cineastas que prestou atenção a este fenômeno urbano. "Na Torre de David você vai encontrar o mesmo que em qualquer bairro de Caracas".
Há que se levar em conta algumas características especiais que impedem este lugar de ser resumido como uma simulação de favelas. Primeiro, sua verticalidade: "Ao contrário de outros bairros", reconhece Bonadies, com suas próprias experiências de três anos registrando o local em fotografias, junto com o colega Juan José Olavarría, "nos pisos mais altos, você tem a sensação que, se acontece alguma coisa, não tem para onde correr". Em seguida, a síntese entre a cultura da prisão e o credo evangélico.
Graças a essa e outras singularidades, uma cidade que não tem uma Torre Eiffel ou um Obelisco na Avenida 9 de Julho, que tentou, sem sucesso, converter a silhueta das torres gêmeas do Centro Simón Bolívar - um modesto centro cívico dos anos 1950 -, em seu emblema, agora se encontra com a Torre de David como seu cartão postal indesejado. Não deve ser o símbolo que David Brillembourg procurava.
A história sobre a Torre de David está no caminho de se consagrar como um gênero jornalístico próprio. É como ir à Cidade dos Mortos, no Cairo: uma mescla de raridade, cores locais e um olhar condescendente sobre a pobreza do Terceiro Mundo.
Em setembro de 2012, a Bienal de Arquitetura de Venzea deu o seu Leão de Ouro a um projeto chamado Torre de David/Grande Horizonte que o estúdio Urban Think Tank, de Zurique, na Suíça, inscreveu no concurso. O veredicto foi recebido com indignação na Venezuela e acendeu a polêmica muito além da fronteira dos arquitetos. Foi como se a vergonha mais íntima da cidade tivesse sido exposta ao desprezo dos mais proeminentes comissários europeus do exotismo que o drama social esconde. Para inflamar ainda mais os críticos, a equipe vencedora incluiu em seus integrantes um arquiteto venezuelano, Alfredo Brillembourg, parente de David.
A consagração da Torre de David como um lugar metafórico da trama de Homeland - as cenas do capítulo foram, na realidade, filmadas em Porto Rico - foi demais para alguns venezuelanos, especialmente porta-vozes do governo, cuja propaganda se baseia nas conquistas sociais da autodenominada Revolução Bolivariana. "Seus diretores vão diretamente para a torre, tentando colocá-la como o novo símbolo da capital venezuelana", queixava-se o autor de uma coluna de opinião difundida pela agência estatal de informação. "Que razão existe para que a Venezuela apareça em uma série em que o presidente Barack Obama apoia abertamente a incentiva a ver, e tem o apoio e o respaldo da CIA? É uma espécie de preparação para que o povo norte-americano justifique qualquer agressão ao nosso país? O tempo dirá".
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