Ideias para salvar nossa privacidade em meio à batalha mundial pelos dados

Dois livros recentes, ‘Privacidade é poder’, de Carissa Véliz, e ‘Uma verdade incômoda’, de SheeraFrenkel e Cecilia Kang, analisam as consequências para a sociedade da exploração dos rastros digitais das pessoas

Mulher consulta telefone celular enquanto passeia em Moscou.Mikhail Tereshchenko (Mikhail Tereshchenko/TASS)

O Facebook ganhou muitas manchetes nos últimos tempos. A recente queda de seus sistemas por cerca de seis horas mostrou quanto somos dependentes da rede social e seus produtos associados, Instagram e WhatsApp. As revelações de Frances Hauguen, a ex-funcionária que depôs há duas semanas no Congresso sobre seus vazamentos para o The Wall Street Journal, provam com documentos internos que os algoritmos do Facebook fomentam intencionalmente a discórdia e que são projetados para causar dependência entre os usuários.

A angústia mundial que causou o breve apagão mostra, de fato, que os esforços da empresa para captar a atenção dos usuários (cerca de 3,5 bilhões no total, somando todas as suas plataformas) e retê-la pelo maior tempo possível têm sido bem-sucedidos. Independentemente de seus métodos serem válidos ou não, eles funcionam. Por que o Facebook está tão interessado em manter os usuários conectados pelo maior tempo possível? A resposta está no motor do que Shoshana Zuboff chama de capitalismo de vigilância: a coleta de dados. A economia digital se nutre deles. Ela os processa, refina e os serve aos anunciantes para que possam personalizar sua publicidade, ou às empresas, para que planejem novos serviços. Quanto mais detalhes souberem sobre cada usuário da internet, melhor será a estratégia para abordá-los e lhes oferecer um produto.

Dois livros publicados recentemente exploram as consequências para os cidadãos da exploração dos seus dados pessoais na era digital. Em Privacidade é poder (Editora Contracorrente), traduzido após o sucesso de sua versão em inglês e selecionado em 2020 pela The Economist como um dos livros do ano, a filósofa hispano-mexicana Carissa Véliz reflete sobre a grave interferência em nossas vidas que representa a própria existência do capitalismo de vigilância. A professora de Ética Digital da Universidade Oxford contribui com ideias interessantes, como a concepção coletiva da privacidade: é coletiva porque todos sofremos os efeitos de sua ausência e porque uma interferência na intimidade de um indivíduo pode afetar a de outros. Seu diagnóstico é contundente: temos que acabar com o capitalismo de vigilância, não podemos permitir que haja empresas cujo modelo de negócio consista em extrair nossos dados e fazer negócios com eles.

Carissa Véliz, na Universidade Oxford, onde leciona Filosofia e Ética. Manuel Vázquez

Uma verdade incômoda (Editora Companhia das Letras), das jornalistas Sheera Frenkel e Cecilia Kang, do New York Times, analisa a trajetória recente do que talvez seja o maior expoente desse modelo: o Facebook. As autoras mostram como a maior rede social do mundo se tornou a gigante que é hoje priorizando o crescimento constante da plataforma em detrimento da segurança e da privacidade de seus usuários. O livro é resultado de cerca de 1.000 horas de entrevistas com centenas de fontes, a maioria delas antigos ou atuais funcionários da empresa que confirmam o que Hauguen afirma: a cúpula do Facebook só se preocupa em alimentar o crescimento da empresa. O resto é relegado a um segundo plano. E esse crescimento só se nutre de uma coisa: dados, todos os dados possíveis.

O Leviatã dos dados

“O mais chocante para nós foi ver como os executivos sêniores da empresa ignoraram todos os alarmes que vários funcionários deram sobre o que estava acontecendo”, disse Kang por vídeochamada. Ninguém deu ouvidos ao chefe de Segurança do Facebook, Alex Stamos, quando alertou que tinha indícios de que agentes russos estavam usando a plataforma para influenciar as eleições presidenciais dos EUA em 2016. Também não houve ação quando surgiram relatos de que o Facebook, que em Mianmar é a porta de entrada da internet para a maioria das pessoas, estava espalhando mensagens de ódio que acabaram provocando um genocídio, o dos rohingya. Nem quando Donald Trump usou a plataforma para espalhar desinformação (ele chegou a dizer que ingerir desinfetante ajudava a combater o coronavírus) ou incentivar seus seguidores e instigá-los a tomar o Capitólio. “Em muitos casos, quem soava os alarmes acabava saindo da empresa porque via que não estava sendo levado em consideração”, acrescenta.

Mesmo com procedimentos antitruste abertos em Washington e Bruxelas e com sua popularidade seriamente abalada pelos vazamentos de Hauguen, o Facebook está ganhando mais dinheiro do que nunca: fechou 2020 com um aumento de 58% em seus lucros, que chegaram a 29.146 milhões de dólares (162 bilhões de reais). “Eles ainda estão aí porque foram capazes de criar uma máquina de fazer dinheiro tremendamente poderosa. Os anunciantes não podem ir para outro lugar se quiserem um alcance semelhante ao que conseguem com eles”, diz Kang.

Esse maquinário só funciona se conseguir captar a atenção dos usuários, o que lhe permite coletar mais dados sobre eles e monetizá-los melhor. “Para continuar crescendo exponencialmente, precisa do público jovem. Suas próprias pesquisas internas lhes dizem que os adolescentes passam várias horas por dia conectados”, explica Frenkel, coautorade Uma verdade incômoda, por videochamada. “É isso que vão tentar fazer, embora seus relatórios digam que não é bom para as crianças passarem tempo em suas redes sociais”, indica em relação ao vazamento do Wall Street Journal de um documento interno em que se observa que o conteúdo do Instagram é tóxico para as adolescentes.

As jornalistas do 'New York Times' Cecilia Kang e Sheera Frenkel, autoras de 'Uma verdade incômoda’. Beowulf Sheehan (Beowulf Sheehan)

Se Uma verdade incômoda fosse um romance — e de fato vai ser transformado em uma série de televisão — teria dois personagens principais: o fundador e CEO do Facebook, Mark Zuckerberg, e sua diretora de operações, Sheryl Sandberg. Esta última foi contratada em 2008, vinda do Google, para transformar o que até então era uma startup com perdas em uma empresa lucrativa. Sandberg pôs em marcha a guinada do Facebook para a publicidade, marcando o começo do fim para os nostálgicos da rede social.

Extração de dados e privacidade

Uma nota ilustrativa do tratamento que o Facebook tem dado à privacidade dos dados é que, até 2015, os engenheiros da empresa (naquele ano eram cerca de 17 mil) tinham acesso às informações pessoais de qualquer usuário da rede social. Isso inclui endereço, número de telefone, fotos pessoais, amigos e cônjuges, afinidades políticas e uma longa lista de informações que os usuários compartilham por conta própria.

De acordo com uma investigação da ProPublica, os dados coletados pelo Facebook de cada usuário eram catalogados em 2018 em cerca de 50.000 categorias. “Um anunciante poderia segmentar os usuários por preferência religiosa, tendências políticas, classificação de crédito e renda. Sabia, por exemplo, que 4,7 milhões de usuários do Facebook provavelmente residiam em casas com um patrimônio líquido entre 500.000 e um milhão de dólares”, escreveram Frenkel e Kang em Uma verdade incômoda.

Véliz considera um absurdo que todas essas informações sejam gerenciadas por empresas privadas em seu próprio benefício. “Enquanto vendermos e comprarmos dados sempre haverá incentivos para usá-los. Em primeiro lugar, porque será coletado mais do que o necessário e, em segundo lugar, porque serão oferecidos a quem der o lance mais alto. E muitas vezes, como se viu com a espionagem do Pegasus, quem compra esses dados nem sempre tem as melhores intenções em mente”, explica por telefone.

Voltando ao Facebook, a empresa apresentou há um mês óculos inteligentes desenvolvidos em conjunto com a Ray-Ban que incorporam duas videocâmeras discretas na moldura. “O que mais me assusta nisso é a agenda que está por trás: que nos acostumemos a usá-los, que nos gravem o dia todo. Estamos nos tornando informantes das empresas”, afirma Véliz.

Em Privacidade é poder, a filósofa desenvolve a ideia de que o negócio dos dados está corroendo a democracia. “Não somos tratados de forma igual, mas com base no valor dos dados que cada um aporta; a sociedade torna-se cada vez mais polarizada porque o conteúdo que divide as pessoas é o que melhor funciona. Se acrescentarmos a isso a propaganda política personalizada, a ingerência estrangeira nas eleições e o escândalo da Cambridge Analytica, temos motivos para nos preocupar”, conclui.

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