Facebook cria órgão independente que decidirá o que seus usuários podem ver
Uma ganhadora do Nobel da Paz, uma ex-primeira-ministra dinamarquesa, um ex-diretor do ‘The Guardian’ e um professor da UERJ estão entre os membros do novo conselho moderador
O Facebook anunciou a composição de um novo organismo que moderará conteúdos, uma instância independente à qual os usuários e a própria companhia podem recorrer para tomar decisões sobre publicações que afetam a liberdade de expressão e os direitos humanos. Mark Zuckerberg, fundador da rede social, anunciou em 2018 sua intenção de criar uma entidade à margem da estrutura da empresa para moderar os conteúdos mais polêmicos. O resultado é um conselho formado, até o momento, por 20 personalidades de todo o mundo, que selecionará e ponderará sobre os limites globais da liberdade de expressão. Suas decisões serão transparentes e de cumprimento obrigatório para a rede, desde que não entrem em conflito com leis locais. Os conteúdos suscetíveis de serem moderados serão os do Facebook e Instagram. O conselho não terá, ao menos por enquanto, capacidade sobre o WhatsApp, outra plataforma pertencente à companhia.
Esta nova instância depende de uma organização alheia à empresa, embora tenha sido criada pela matriz com uma doação irrevogável de 130 milhões de dólares (800 milhões de reais). Os membros do conselho, composto por 10 mulheres e 10 homens, não são funcionários do Facebook nem podem ser demitidos por Zuckerberg. Nesta quarta-feira, foi anunciada a composição desse órgão, que incluirá personalidades como a ativista iemenita Tawakul Kerman, ganhadora do Nobel da Paz de 2011, a ex-primeira-ministra dinamarquesa Helle Thorning-Schmidt e o jornalista britânico Alan Rusbridger, que dirigiu o jornal The Guardian durante duas décadas. Ronaldo Lemos, advogado de propriedade tecnológica e intelectual e professor de Direito da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), é um dos dois únicos latino-americanos da lista, ao lado da jurista colombiana Catalina Botero-Marino, diretora da Faculdade de Direito da Universidade de Los Andes e, entre 2008 e 2014, relatora para a liberdade de expressão na Organização dos Estados Americanos.
O nome oficial é conselho assessor de conteúdo, ou oversight board, e seus membros têm, sobretudo, perfis vinculados ao mundo do direito, ao ativismo digital e aos meios de comunicação. Ao todo serão 40, o dobro dos atuais, embora o processo de seleção deva se prolongar até 2021. O órgão tem quatro copresidentes, que são os que se encarregaram, junto ao Facebook, de recrutar os outros 16 convidados. Além de Botero-Marino e Thorning-Schmidt, os outros dois copresidentes serão os norte-americanos Jamal Greene, catedrático da Universidade Columbia, e Michael McConnell, ex-juiz federal dos EUA e hoje professor em Stanford.
“Isso representa uma mudança fundamental quanto à forma como as decisões difíceis são tomadas no Facebook”, disse Brent Harris, diretor de Assuntos Globais da empresa, em uma entrevista coletiva para jornalistas de todo o mundo, à qual o EL PAÍS assistiu e que teve a participação dos quatro copresidentes e de Thomas Hughes, diretor-administrativo do conselho. Embora sua fundação já seja oficial, só começará a analisar casos dentro de alguns meses. Nas próximas semanas, e com as dificuldades acrescentadas pela pandemia, a instituição contratará pessoal e decidirá a melhor forma de se coordenar e trabalhar.
Outros encarregados
Com esse conselho, a intenção da empresa é terceirizar um dos aspectos que mais lhe causam problemas em seu trabalho: os limites à liberdade de expressão dos usuários, levando em conta seus contextos nacionais. O Facebook já transferiu a verificação rotineira de conteúdos para organizações externas, que são as que assumem a avaliação sobre a veracidade de determinada publicação. O Facebook então só acrescenta esse veredicto ao conteúdo questionado e faz que essas mensagens sejam menos visíveis nas contas dos outros usuários.
Com o novo tribunal supremo ocorrerá algo semelhante. As atribuições difíceis não ficarão nas mãos dos funcionários da companhia, que assim se isolarão de decisões que frequentemente dependem de sensibilidades ideológicas ou regionais. Os veredictos deliberados do tribunal, que inclui gente muito diversificada, evitarão a sensação de que um grupo de executivos em Palo Alto decide o que centenas de milhões de pessoas veem ou deixam de ver. Por outro lado, o Facebook se comprometeu publicamente a cumprir as decisões do conselho. “Se não fizerem isso, o custo para a reputação seria muito alto”, disse Botero-Marino.
“Não seremos a polícia da Internet”, quis esclarecer McConnell. “Não será algo rápido, será mais uma corte de recursos que delibera depois do fato. O objetivo é promover a justiça, a neutralidade”, acrescentou. Serão três os critérios para selecionar os casos entre os milhares que chegarão, segundo McConnell: que afetem muita gente, que tenham muita importância por suas consequências, ou que possam afetar as políticas do Facebook. “Não haverá respostas corretas. Ninguém estará sempre satisfeito com nossas decisões”, acrescentou. Como empresa privada, o Facebook pode decidir sobre seu conteúdo. “O direito público vai por outro caminho”, explicou McConnell.
Inicialmente, o tribunal verá casos denunciados por usuários que tiveram conteúdo apagado pelo Facebook, mas depois permitirá os recursos de usuários que queiram pedir que se apague um conteúdo determinado. O conselho poderá decidir não só sobre publicações, também sobre anúncios ou grupos. Poderá também recomendar políticas ao Facebook baseadas nos veredictos.
“Sempre estive comprometido com a liberdade de expressão e de pensamento, mas o crescimento do Facebook criou novas oportunidades e desafios”, diz o juiz húngaro András Sajo, ex-vice-presidente do Tribunal Europeu de Direitos Humanos e um dos membros do conselho, numa mensagem de apresentação no site do organismo.
A rede social do mundo
Este novo tribunal dará mais peso à imagem do Facebook como a grande rede social do mundo. A metáfora que fala do Facebook como um país próprio ganha agora um pouco mais de fundamento: já tem seu poder judiciário independente. É difícil pensar em redes concorrentes que tenham a capacidade de instituir organismos que incluam personalidades de tanto nível e com capacidade de decisão real sobre os limites da liberdade de expressão em lugares com tradições diferentes. O tribunal se centrará no conteúdo do Facebook e Instagram, mas está aberto a assumir outras redes sociais, como o Twitter, conforme disse Thomas Hughes, seu diretor-administrativo.
O conselho permitirá, segundo Botero-Marino, que os Estados pensem duas vezes sobre a conveniência de regular a rede: “A melhor maneira de manter a arquitetura atual da Internet e evitar a regulação de Estados é que as companhias se autorregulem”, disse. “Este é um bom exemplo porque inclui independência, transparência e diversidade."
“As sociedades não podem funcionar se seus cidadãos não chegarem a um acordo sobre que significa prova, fato e verdade”, diz Rusbridger em uma mensagem na Internet. “Talvez tenhamos demorado demais para percebermos isso. O conselho assessor de conteúdo parece ser o primeiro passo ousado e imaginativo da parte de um dos principais atores para encontrar um modo de conciliar a necessidade de impor algum tipo de padrão ou julgamento do que é publicado, ao mesmo tempo em que mantêm as coisas que são maravilhosas nas redes sociais e necessárias para a liberdade de expressão”, acrescenta.
Faltando ainda a definição de metade de seus membros, o conselho também tem lacunas. O Facebook não está presente na China, então a única integrante de fala chinesa é a taiwanesa Katharine Chen, catedrática de Comunicação na Universidade Nacional Chengchi. E a única pessoa vinculada à Rússia é a camaronesa Julie Owono, diretora-executiva da organização Internet Sem Fronteiras, que cresceu nesse país.
Há também cinco membros norte-americanos contra apenas três europeus (Sajo, Rusbridger e Thorning-Schmidt). Esse número de norte-americanos se deve, segundo Harris, ao fato de que havia muitos candidatos de lá que os impressionaram, e que a maioria dos casos mais polêmicos para a rede começaram nesse país.
Ao menos por enquanto, os membros trabalharão em tempo parcial e receberão uma compensação compatível “com os conselhos do setor tecnológico”, segundo Hughes. O trabalho deste tribunal não tem em princípio por que interferir na atuação dos verificadores de informação, embora seja provável que eventualmente ocorram conflitos. Durante a pandemia do coronavírus, a Espanha viveu uma polêmica substancial sobre a suposta censura nas redes sociais, embora centrada sobretudo no aplicativo de mensagens WhatsApp.