Quando o baile funk de Paraisópolis se calou (e não por bombas da PM)
Uma semana após ação da PM que culminou em nove mortos durante a festa Dz7, comunidade vê afluência menor, dança e canta e homenageia vítimas
Eram 3h15 da madrugada do dia 8 de dezembro quando as caixas de som ficaram mudas. Dezenas de alto-falantes montados nos porta-malas de carros, dentro dos bares e em barracas de bebida, que segundos antes tocavam sucessos do funk em uma polifonia de graves vindos de todas as direções, se calaram. Foi assim, com alguns minutos de silêncio, que a comunidade de Paraisópolis e os frequentadores do baile Dz7 homenagearam os nove mortos pisoteados durante o massacre ocorrido no dia 1º, quando uma ação da Polícia Militar desencadeou pânico e encurralou centenas de pessoas em vielas sem saída.
Mas, na segunda maior favela de São Paulo, o baile não para por muito tempo. Terminados os minutos sem ruído e festa, quando alguns ainda atravessavam um transe da memória, as caixas de som —dentre elas um paredão montado na caçamba de uma picape cujo som se sobressaia ao de todas as demais― voltaram a tocar. Lucas Pereira de Souza, 24 anos, dançava com um sinalizador verde aceso, do mesmo modelo daqueles usados pelas torcidas em estádios. “É para comemorar, extravasar... Eu estou feliz com o baile, feliz que ele está acontecendo, mas metade do meu coração está partido. Tenho a idade dos meninos que morreram, mas graças a Deus estou vivo!”
Não foi uma festa qualquer. Ainda pairavam incerteza e medo. Com a comunidade de luto, esta edição do Dz7 foi mais vazia do que de costume: a violência com que a PM agiu na semana passada afastou boa parte dos frequentadores que moram em outros bairros ou cidades. Nesta madrugada, no entanto, os agentes se limitaram a ocupar as entradas de Paraisópolis e não agiram para fazer a dispersão. Ainda não se sabe se numa mudança tática por conta da comoção e da presença da imprensa ou a estreia de uma nova conduta mais perene, já o governador tucano João Doria admitiu rever as práticas de abordagem e protocolos da polícia nos bailes, onde os agentes prenderam quase 1.300 pessoas só em 2019.
Houve ausências e também estreias. Em um momento de incerteza para o bairro, Luciano Borges, um dos padres que atua no local e que nunca havia ido ao baile, fez questão de comparecer. "Aqui é um espaço de cultura e lazer que deve ser respeitado pela polícia. Não deve ser marginalizado, como muitas vezes acaba sendo”, afirmou, no começo da festa.
Para muitos, deixar de ir ao Dz7 não era uma opção. “Eu fiquei com medo, mas tive que voltar. Esse é meu ganha pão, eu e muitas pessoas dependemos do baile para sobreviver”, conta John, 29, que trabalha vendendo bebidas em um carrinho customizado que conta com caixa de som. Em um dia bom de trabalho ele consegue 700 reais. “Mas isso quando a polícia não ataca a gente, né?”. O carro chefe de sua barraca —e de praticamente todas as outras— é o combo whisky e energético, que gira em torno de 40 reais a garrafa. “Mas o gelo de maracujá e de coco também sai bastante”, emenda.
Se quem depende do baile para sobreviver não tem muita escolha, os frequentadores se viram diante de um dilema. “Vários amigos meus não quiseram vir por medo após o que aconteceu”, conta Luan Araújo, 22, que pegou duas conduções desde Osasco, onde mora, para curtir o baile em Paraisópolis. “Mas eu vim por dois motivos: primeiro porque é minha única alternativa de lazer. E segundo porque precisamos mostrar que funk não é só coisa de bandido, como dizem na TV”, afirma. Com 40 reais no bolso ele e um amigo se divertem madrugada adentro naquele que é considerado por muitos o melhor baile funk de São Paulo. “Em qual festa sem ser essa daqui eu consigo curtir com esse dinheiro?”, indaga.
Mesmo algumas pessoas que foram diretamente afetadas pela tragédia compareceram ao baile. “Eu perdi um amigo aqui no final de semana passado, o Denis Guilherme, de 16 anos”, afirma Samir Marques, 18. “Eu pensei em não vir. Mas achei que o Denis gostaria de ser lembrado por mim aqui. Acho que ele queria que eu estivesse feliz e homenageando ele”, diz enquanto dança segurando um enorme guarda-chuva rosa e azul com o logo da Puma na mão direita. Na esquerda, um copo de 500ml de whisky e energético. Vai se equilibrando no “frevo em ritmo de funk”, como define. O acessório é uma espécie de marca registrada do Dz7: ao seu redor dezenas de jovens também balançam suas sombrinhas estampadas pela Oakley, Ferrari e Lacoste.
Sem nenhuma ação da polícia para dispersar o baile, algo que costuma ocorrer por volta das 3h30, um caos organizado imperou. Mesmo com milhares de pessoas bebendo e consumindo drogas como maconha, loló e cocaína —como ocorre em qualquer festa, seja em Paraisópolis ou Higienópolis―, a reportagem não presenciou confusão ou briga entre os presentes durante as sete horas em que esteve no local, algo raro para um evento deste porte.
Mas esta aparente harmonia tem um fiador. “Acontece o seguinte: se você vier pra curtir o baile numa boa e andar na linha, não pega nada”, explica a jovem K. A., de 24 anos. “Mas se você pisar na bola, vier com ignorância, assediar as meninas, aí os irmãos vão te cobrar. Agora há pouco um cara colocou o pau pra fora e começou a mijar na frente de um monte de gente. Levou uma multa [advertência] dos irmãos. Eles ficam circulando pelas ruas de olho no movimento”, diz. Irmão é o nome dado para integrantes da facção Primeiro Comando da Capital. Paraisópolis é um dos maiores redutos do grupo criminoso em São Paulo, e sua presença se faz sentir na disciplina imposta. “Vou ser sincera com você, e olha que eu sou trabalhadora, eu estudo e trabalho, saio de casa 5h30 e volto quase meia noite: os bandidos respeitam mais a gente do que a polícia”, diz K. A. em tom de desabafo. Um desabafo de quem levou “tapa na cara” e teve o caderno de anotações da escola rasgado por um PM na viela onde mora no final de novembro.
Com suas chagas novas e antigas, Paraisópolis assistiu ao primeiro baile da Dz7 se encaminhar para o fim, para, neste domingo pela manhã , abrigar a missa de sétimo dia por Gabriel dos Santos, 22 anos, Gustavo Cruz Xavier, 14, Marcos Paulo Oliveira dos Santos, 16, Denys Henrique Quirino da Silva, 16, Dennys Franca, 16, Mateus dos Santos Costa, 23, Eduardo da Silva, 21, Luara Victoria Oliveira, 18, e Gabriel Rogério de Moraes, 20 anos.