Coluna

A estética valente

As ruas pintadas ou as praias encovadas são atos de valentia contra o poder que controla o espaço público

Ativistas colocam cruzes na praia de Copacabana, no Rio de Janeiro, para denunciar a má gestão do Governo brasileiro durante a pandemia do novo coronavírus.Antonio Lacerda (Efe)

A palavra mais parece jargão de juristas ou teólogos: parrésia. Michel Foucault a recuperou para descrever o sentido da “palavra verdadeira”, a ousadia dos que falam para desafiar os poderes instituídos. É a coragem da verdade. Há risco para quem assume o dever da verdade em regimes autoritários, pois falar é arriscar-se. Os atos de fala verdadeiros são também atos estéticos, como o mural “Black Lives Matter” pelas ruas da cidade de Martinez, na Califórnia, ou as cruzes p...

A palavra mais parece jargão de juristas ou teólogos: parrésia. Michel Foucault a recuperou para descrever o sentido da “palavra verdadeira”, a ousadia dos que falam para desafiar os poderes instituídos. É a coragem da verdade. Há risco para quem assume o dever da verdade em regimes autoritários, pois falar é arriscar-se. Os atos de fala verdadeiros são também atos estéticos, como o mural “Black Lives Matter” pelas ruas da cidade de Martinez, na Califórnia, ou as cruzes pelos mortos pela pandemia de covid-19 na praia de Copacabana, no Rio de Janeiro.

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“Black Lives Matter” foi escrito em letras garrafais. O amarelo de cada palavra contrastava ao asfalto escuro, o mesmo chão de um país de onde George Floyd suplicou respirar. A ousadia dos que instalaram a verdade contra o racismo foi comedida—a prefeitura da cidade havia autorizado a instalação. A verdade encontrou seu alvo. Com um balde de tinta preta, um homem e uma mulher brancos lançaram-se a destruir as palavras verdadeiras. Como o patriarcado está entranhado aos racistas, o homem era o porta-voz de “Make America great again”, enquanto a mulher esfregava o chão. O homem esbravejava: “o racismo é uma mentira liberal”.

Os autoritários não suportam a verdade. E eles se repetem quando confrontados com a parrésia dos valentes. O Brasil é o epicentro da pandemia global de covid-19: são mais de 65 mil mortos e um presidente adoecido que contesta o uso da máscara como quem protege a masculinidade. Quarenta voluntários da ONG Rio de Paz se reuniram para um protesto na praia de Copacabana: cavaram 100 covas na areia, distribuíram bandeiras do Brasil pelas cruzes. As covas eram simbólicas sobre as mortes da pandemia. Uma faixa dizia “O Brasil está na contramão do mundo”.

A verdade das covas provocou a fúria de um aliado de presidente Bolsonaro, quem fez de seu corpo o instrumento da destruição. Enquanto arrancava as cruzes e destruía as covas, um pai em luto rearranjava as cruzes. “Eu estava apenas passando na praia e vi aquela manifestação em apoio às vítimas. Foi um ato voluntário de um pai que está com uma dor muito grande aqui”, disse o homem que não fazia parte do ato, mas foi o corpo valente à cena. O luto pelo filho morto o fez um ativista de um ato público do qual não havia planejado participar. Foi um ativista enlutado pelo direito ao luto público.

O que essas duas cenas têm em comum? Elas desafiam espaços de aparição pública; elas são atos de coragem pela verdade. As ruas pintadas ou as praias encovadas são atos de valentia contra o poder que controla o espaço público, gente que se encontra pela experiência do luto. Judith Butler percorre como a parrésia, o “discurso valente”, é uma forma de resistência e risco: é o corpo que diz a verdade em um jogo em que se arrisca a própria vida, pois a vontade de verdade é mais forte que o medo. Os que pintam com tinta amarela as ruas onde Floyd foi morto ou levantam as cruzes em uma Copacabana em cenário de pandemia enunciam com seus corpos: é o luto que vence o medo.

Debora Diniz é brasileira, antropóloga, pesquisadora da Universidade de Brown.

Giselle Carino é argentina, cientista política, diretora de IPPF/WHR.

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