Coluna

O que se sabe sobre a sexualidade de Jesus? Houve um evangelho erótico?

Os Evangelhos que a Bíblia católica nos oferece são uma fonte de sabedoria. Basta ter a coragem de lê-los sem preconceitos, sem artifícios de sacerdotes e pastores

Porchat e Duvivier no especial do Porta dos Fundos para a Netflix.

Entre os muitos mistérios contidos nos Evangelhos cristãos e suas ainda muitas perguntas sem respostas, acredita-se que pôde ter existido um Evangelho secreto de Marcos, anterior ao que hoje conhecemos como um dos quatro Evangelhos canônicos e considerado o mais antigo. E até mesmo um Evangelho erótico.

“Quanto à possibilidade de que tenha existido um Evangelho secreto de Marcos, há por exemplo uma passagem muito concreta que difere claramente do Marcos oficial. Um texto que criou muitos problemas, pois houve algumas seitas, como os carpocracianos, que o interpretaram em chave homossexual ou erótica. Por isso deve ter desaparecido da versão posterior, que é a oficial atualmente. O texto diz: “E chegaram a Betânia. Havia ali uma mulher cujo irmão tinha morrido. Aproximando-se de Jesus, ajoelhou-se e lhe disse: ‘Filho de David, tem misericórdia de mim”, mas os discípulos a afastaram, e Jesus, "enfurecido, saiu com ela para o jardim, onde estava o monumento, e logo depois ouviu-se um grito procedente dali.” Jesus se aproximou e removeu a pedra da entrada do monumento. Em seguida, entrando no local onde estava o jovem, estendeu sua mão e o ressuscitou. “Levantando os olhos, o jovem o amou e começou a lhe pedir que o deixasse ficar com ele. E, ao sair do monumento, eles entraram na casa do jovem, que era rico. Passados seis dias, Jesus lhe disse o que tinha que fazer e, durante a noite, o jovem veio até ele, usando um vestido de linho sobre seu corpo nu. E ficou com ele naquela noite, pois Jesus lhe mostrou o mistério do reino de Deus.”

A ideia que estudiosos da Bíblia, como John Dominic Crossan, têm sobre essa passagem é que esta versão figurava no Marcos secreto, sendo depois censurada. Acredita-se que poderia ser um texto usado durante o ritual nudista do batismo, razão pela qual alguns fiéis teriam lhe dado uma interpretação de tipo erótica. Por isso, teria sido excluído da versão oficial. Mas há quem pense que, mais do que ser eliminado, esse texto foi diluído em diversas partes no texto oficial de Marcos. Por exemplo, restos daquele texto estariam no curioso episódio de Marcos que conta que, no momento em que foram deter Jesus no Jardim das Oliveiras, “todos o abandonaram e fugiram” e que “um jovem, envolto em um lençol sobre o corpo nu”, seguia Jesus e, após tê-lo alcançado, “largando o lençol, fugiu nu”. E depois, levantando-se, se voltou à margem do Jordão.

Crossan afirma que, nos tempos de Clemente de Alexandria, chegaram a existir três versões do Evangelho de Marcos: o secreto, o canônico e o erótico, e que o Marcos secreto deve ter exercido um papel muito importante na liturgia do batismo, pois, do contrário, simplesmente o teriam destruído. Por outro lado, Jesus não batizava, embora tenha sido batizado por João Batista, e o batismo nudista não tinha por que ser visto de forma homossexual como fizeram algumas seitas dissidentes.

Tudo isso, explicam os especialistas bíblicos, revela a importância que muitos Evangelhos considerados apócrifos teriam tido se não tivessem sido censurados e inclusive eliminados muitas vezes só porque podiam ferir a sensibilidade dos legalistas e dos alérgicos a qualquer tipo de sexualidade.

Hoje não se descarta que Jesus, se for verdade que não se casou —coisa cada vez mais difícil de provar, considerando a cultura daquele tempo, em que era inconcebível que um homem não se casasse e tivesse uma família—, pode ter sido homossexual, como, por sinal, aparece na sátira produzida pelo Porta dos Fundos, um produto humorístico que não deveria escandalizar ninguém. Chegou-se a supor que o companheiro de Jesus fosse o jovem discípulo João, um dos poucos dos quais não se fala que tenha formado uma família.

A questão do possível casamento de Jesus com Madalena, que não era a prostituta que a Igreja afirmou durante anos, e sim uma mulher de alta formação intelectual, do movimento gnóstico, do qual existe um Evangelho escrito por ela entre os manuscritos encontrados no Alto Egito, é outro dos temas sobre os quais a Igreja prefere fechar os olhos.

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Há quem tenha visto, por exemplo, na passagem da crucificação, onde se conta que foi Madalena, e não sua mãe ou os apóstolos, por exemplo, a primeira pessoa à qual Jesus apareceu após ser ressuscitado, a demonstração de que ela era sua mulher. Até mesmo São Tomás de Aquino, doutor da Igreja, atormentava-se pensando por que Jesus não tinha aparecido primeiro aos apóstolos e o havia feito a uma mulher, já que, além disso, naquele tempo o testemunho de uma mulher não tinha valor nem durante um julgamento. Não se acreditava na palavra da mulher.

Jesus, que já havia quebrado todos os preconceitos burgueses e culturais para pregar a força da liberdade do espírito, quis naquele momento fundamental, como foi a passagem da morte à vida, deixar o registro, ainda que de maneira metafórica, de que ele não aceitava preconceitos sociais. E que se para ele não existia diferença entre judeus e gentios, entre justos e pecadores, tampouco existia entre homem e mulher. Foi para outra mulher, a Samaritana, perto de um poço, que revelou que chegaria o dia em que os filhos de Deus não precisariam disputar templos e catedrais para a adoração de Deus; renderiam culto em seu próprio coração e na liberdade de espírito.

Os Evangelhos que a Bíblia católica nos oferece são uma fonte de sabedoria antiga e moderna ao mesmo tempo. Apesar de terem sido censurados, a maioria dos outros Evangelhos existentes nos primeiros anos e séculos do cristianismo constituem ainda hoje não só uma importante fonte literária, mas libertadora de tabus. Basta ter a coragem de lê-los sem preconceitos, sem artifícios de sacerdotes e pastores. Esses textos possuem uma grande força espiritual e humana. E nos convocam a nos libertarmos de preconceitos e imposições externas castradoras da cultura. Querer domesticá-los e usá-los para acorrentar consciências seria o maior pecado, para o qual Jesus dizia que não havia perdão.

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