Neil Gaiman: “Sempre vivi em um mundo onde é possível que seu trabalho seja cancelado”
Escritor britânico se estabelece como grande produtor de televisão com o controle de três séries baseadas em seu trio de obras de maior destaque: ‘Deuses Americanos’, ‘Belas Maldições’ e ‘The Sandman’
Neil Gaiman (Portchester, Reino Unido, 60 anos) é um escritor privilegiado dentro do mundo voraz da televisão: pode controlar milimetricamente, como produtor, a translação de seus romances e histórias em quadrinhos para séries, algo fora do alcance de muitos, para não dizer de quase todo mundo. O escritor passou os últimos cinco anos atrás das câmeras das adaptações de três de seus marcos vitais: Deuses Americanos, Belas Maldições e o trabalho que o tornou conhecido e é a obra de sua vida, The Sandman. Da primeira série, estreia agora a terceira temporada na Amazon Prime Video (11 de janeiro) com a certeza de que melhorará a criticada temporada anterior; da segunda, comemora o fato de ter sido “apreciada por milhares de pessoas” (também na Prime Video); e da terceira, como bom bardo que é, guarda todos os segredos para não revelar nada antes do tempo (está sendo filmada para a Netflix).
O caminho de Gaiman, como o de todo mundo, parou em março de 2020, quando começaram em nível global os confinamentos devido à pandemia pelo coronavírus, e deixou muitas portas abertas. Uma reviravolta histórica que nenhum de seus deuses previu. Deuses Americanos conta a história de um confronto entre os velhos deuses míticos e os novos (os meios de comunicação, a Internet, a tecnologia, etc.). E em The Sandman, figuras divinas, os Eternos (representações de conceitos como a morte, o sonho, o desejo e o delírio), são os protagonistas. “O que aprendi com 2020 é que sempre que tentei fazer qualquer tipo de plano, para qualquer coisa, por menor que fosse, pude ouvir, depois de cinco minutos, uma semana ou mês, Deus rindo. Entrei em 2020 meio mal-humorado, mas sabendo o que ia fazer todos os dias durante os três anos seguintes. E tudo que sei agora é que não sei nada”, conta em conversa por videoconferência de sua casa na ilha de Skye (Escócia).
Gaiman, que nos últimos dois anos publicou um livro sobre mitos nórdicos e supervisionou a adaptação de The Sandman para audiolivro da Audible, aproveitou a segunda metade do ano passado, com metade da indústria da televisão paralisada, para refletir sobre sua faceta televisiva e seu papel como produtor executivo. “O mais importante que aprendi é a confiar em mim mesmo. No início, principalmente com Deuses Americanos, não sabia se conseguiria ser suficientemente assertivo, não confiava em mim o suficiente para dizer ‘não, sério, sei do que estou falando’, e agora, especialmente depois de ter feito Belas Maldições, onde precisava confiar em meu critério até o fim, sinto que fiz bem”, assinala o escritor.
“Com The Sandman, onde Allan Heinberg está fazendo um incrível trabalho como showrunner, eu me vejo capacitado para argumentar e explicar por que tal coisa é desta forma ou de outra”, acrescenta Gaiman, que redireciona a conversa para a próxima estreia da terceira temporada de Deuses Americanos, cuja filmagem terminou pouco antes do confinamento. “Tudo isso também funcionou muito bem na terceira entrega. [O roteirista] Charles Eglee e eu fizemos um trabalho adicional durante uma semana no festival South by Southwest de Austin, Texas. Juntamos tudo e planejamos como levar a história de volta ao livro e como transformá-la em uma montanha russa que viaje tanto pelo livro quanto pela série”, conta, assimilando de passagem, e com elegância, as críticas à segunda temporada da série, acusada de ser mais uma viagem estética do que um conteúdo com substância e de se afastar das tramas do livro original.
Entre esses projetos que Gaiman diz que sabia como faria nos próximos três anos antes de se deparar com a pandemia está a quarta e última temporada de Deuses Americanos. Como criador de histórias, como lida com este mundo de cancelamentos? “É o mundo em que sempre vivi, porque comecei trabalhando com histórias em quadrinhos. Comecei a escrever The Sandman [publicado no final dos anos oitenta] e tinha uma grande história em minha mente. Sabia que se não vendêssemos revistas suficientes iriam nos cancelar. A razão pela qual planejei a trama da primeira história para que se limitasse apenas a oito capítulos foi porque no número 8 é que diziam se você tinha sido cancelado por não vender o suficiente. Sempre vivi em um mundo em que essa é uma possibilidade”, responde. “Você não pode viver pendente disso. Precisa trabalhar no que acredita que tem de fazer, e esperar que encontre seu público. Com Deuses Americanos [o livro foi best-seller em 2001] tivemos sorte, encontrou um público enorme no mundo todo. Belas Maldições também. O número de pessoas que viu a série é incrível. E mal posso esperar que The Sandman estreie, o que estou vendo agora na filmagem é muito inspirador. Você faz o melhor que pode, não pode fazer as pessoas chegarem e verem as coisas, nunca há garantia de uma segunda ou terceira temporada, você só pode fazer o melhor que puder e ter esperança”, conclui.
A nova temporada de Deuses Americanos voltará a se concentrar no livro e em uma das tramas favoritas de Gaiman, ambientada em uma pequena cidade de Wisconsin em meio a um inverno rigoroso, com neve. Lá seu protagonista, Shadow (Ricky Whittle), terá de repensar sua vida após conhecer os segredos da segunda temporada. “Gostei de ver Ricky ao longo destes anos, ele avançou e se tornou um protagonista absoluto. Cresceu como ator e agora projeta uma confiança e uma calma de quem sabe o que faz quando está na tela. Somos conduzidos por um ator protagonista com 60 anos de experiência e criamos um na série”, diz o escritor.
Esses 60 anos de experiência têm o nome de Ian McShane, que também é produtor da série. O ator de séries como Deadwood interpreta Odin, principal deus da mitologia nórdica. “Um dos meus momentos favoritos em Deuses Americanos foi durante a promoção da primeira temporada, naqueles tempos antigos em que todo mundo ia aos lugares. Estávamos em Nova York e voamos para Los Angeles para a première, e me sentei ao lado de Ian no avião. Durante seis horas, pude falar com ele sobre atuação, sobre teatro, falamos sobre como, quando ele era um ator jovem, participou da primeira representação de Loot, de Joe Orton. Uma das coisas que percebi é que Ian McShane encarna a atuação inglesa, é um tesouro nacional, e quando você lhe dá um papel como este... teria sido tão fácil interpretá-lo sem senso de humor, sem encanto, e mesmo assim Ian dá ao papel um charme travesso que o deixa, literalmente, sair ileso de ser um assassino. Você sempre lhe daria uma segunda chance, porque adora passar tempo com ele quando está na tela, e isso é sempre uma delícia”.
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